O ano novo chega com grandes desafios para o governo, sob ataque cerrado da imprensa burguesa produtora de manchetes que, sendo necessário aos seus propósitos, distorcem as próprias notícias. O artifício não é novo. A diferença é que, antigamente, quando as folhas eram penduradas nas bancas, esses títulos atraíam a atenção do transeunte e, hoje, quando circulam pelas redes sociais e pelos grupos de WhatsApp, chegam a quem está sentado no sofá de casa ou em qualquer outro lugar. Não adianta, porém, culpar a tecnologia, pois o buraco é mais embaixo.
Já virou lugar-comum dizer que a direita é mais eficiente no uso das redes sociais e que, ao “propagar o ódio”, conquista mais adeptos que a esquerda difusora do amor. Se isso for verdade, a culpa será do povo, estruturalmente racista, homofóbico e misógino. Mesmo com os esforços dos identitários, que, com suas cartilhas, tentam criar uma nova consciência, que imputa a boa parte da população o pecado original da “branquitude cis tóxica”, impingindo-lhe o catecismo da teoria crítica racial, é a direita que cresce. Por que será? Talvez por isso mesmo. Vejamos.
Para começo de conversa, não se trata de amor ou ódio. Trata-se, isto sim, de retomar um conceito central da teoria marxista que a esquerda universitária, com seus jovens “especialistas” nisto ou naquilo, parece ter esquecido. É a luta de classes que explica a sociedade, não o “pacto da branquitude misógina heteronormativa”. Questões raciais, preconceito contra mulheres e LGBT, tudo isso existe, mas não é suficiente para explicar as contradições da sociedade. Diga-se, a propósito, que esses temas sempre estiveram na pauta da esquerda, mas numa perspectiva de unidade de luta, não de afirmação da “diversidade”.
O identitarismo conseguiu a proeza de transferir a luta de grupos oprimidos para a agenda das grandes empresas transnacionais e dos bancos. É possível que os estudantes universitários, outrora importante força combativa da sociedade, acreditem que o amor tomou o coração dessa gente. A luta desses grupos passou a ser gerida pelos inimigos de classe dos trabalhadores, mais ou menos como se uma raposa tivesse sido escolhida para assumir a gestão do galinheiro.
É claro que as cartilhas de comportamento são apenas uma baliza para orientar políticas de cancelamento, tão caras à turma do amor. Depois vem o aparato legal do estado burguês, com aprovação de lei que criminaliza injúria racial e que, graças a um “entendimento” do STF, o órgão máximo do Judiciário, se estende para ofensa que atinja a população dita LGBTQIAP+.
Os sionistas, reivindicando para si um status racial, têm-se aproveitado bastante dessa lei, por vezes conseguindo, paradoxalmente, intimidar críticas à política de limpeza étnica do “Estado de Israel”. Os LGBTs, por sua vez, processam uns aos outros, como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, que ganhou um desses processos contra o ex-BBB e ex-PSOL Jean Wyllys, hoje deputado pelo PT. O efeito desse tipo de lei é criar um ambiente de autocensura e de intimidação – seja pelo medo da prisão, seja pela imposição de multas, cujo valor, não raro, é arbitrado por critérios tão subjetivos quanto os de julgamento do delito.
Enquanto certa esquerda gasta toda a sua energia na defesa das instituições do estado burguês, que estariam “a serviço do bem”, a direita radical cresce entoando um discurso antissistema, o que, mesmo sendo uma contradição, pois o sistema é controlado pela burguesia, encontra ressonância na população desprotegida. Virou moda nessa esquerda, nutrida pela teoria crítica racial, secundar teorias de Jessé Souza, como a do “pobre de direita”, que, falto de inteligência, seria influenciado pelos pastores evangélicos. Resta saber, então, porque se deixam influenciar. Não terá a esquerda falhado em mobilizar sua base social, contentando-se em reverberar um discurso importado e propagandeado pela imprensa burguesa?
Ora, ONGs que, patrocinadas por bancos, estimulam o “empreendedorismo de favela”, com slogans do tipo “A favela venceu”, em nada se opõem ao trabalho dos pastores direitistas. São complementares: uns e outros querem deixar o favelado na favela, “empreendendo” para seus iguais e eventualmente sendo terceirizados por empresas de fora. Se a coisa der certo, o mérito é da ONG e da fundação de algum banco, que, a troco de redução de impostos, orientou a “pessoa empresária”; se der errado, a igreja entra em ação, com apoio material e estímulo ao cultivo da fé, etc.
Importa desmantelar as relações trabalhistas, hoje vistas como um privilégio para poucos, já que as empresas podem, legalmente, usar trabalhadores “pejotizados” (pessoas que têm CNPJ, seja MEI, seja empresa individual) sem vínculo empregatício. Essa foi, aliás, uma das “conquistas” da reforma trabalhista de Michel Temer, no âmbito do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff.
Nesse cenário, a classe trabalhadora tende a desarticular-se. Privilegia-se o empreendimento individual, em constante concorrência com seus pares. Os vínculos sociais perdidos no ambiente de trabalho são, provavelmente, transferidos para o ambiente religioso e reforçados pelo conservadorismo nos costumes. A direita bolsonarista, malandramente, politiza os costumes, atacando de frente os identitários, que, aliás, fazem a mesma coisa, e resta mascarada a luta de classes.
Enfim, direita “civilizada”, patrocinadora de ONGs do bem, e direita “troglodita” são direita – e tudo indica que estarão cada vez mais próximas até o fim do governo Lula, como uma poderosa frente de oposição. Se a esquerda não recuperar sua capacidade de equacionar as contradições sociais e se continuar no mundo cor-de-rosa da boneca Barbie, abdicando da tarefa de mostrar quem é o inimigo de classe dos trabalhadores, não vai haver discurso do amor nem estratégia de redes sociais que vença as próximas eleições.