Na atual conjuntura política brasileira, uma cena se repete cada vez com mais estridência: os setores pequeno-burgueses da esquerda comemoram e exigem mais repressão estatal, especialmente quando dirigida aos adversários bolsonaristas. Chega a ser irônico pensar que o fim do encarceramento em massa é uma pauta tradicional da esquerda, que parece ter adotado uma postura mais “chave de cadeia”. Tal fenômeno é curioso e perigoso, já que o entusiasmo pela punição substitui qualquer compromisso genuíno com os mecanismos de transformação social e sobretudo de defesa dos direitos democráticos dos trabalhadores.
Em artigo publicado pela Folha de S.Paulo nesta última semana, há a defesa veemente da decisão do ministro Alexandre de Moraes de decretar a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro se baseando no argumento de proteção da democracia e do Estado de direito. A matéria, em vez de questionar criticamente a seletividade judiciária e os métodos de exceção, reforça a ideia de que a justiça é infalível quando serve contra adversários políticos. O problema, no entanto, não está no fato de um jornal da burguesia apresentar uma visão estritamente burguesa, mas sim no fato de amplos setores da esquerda repercutirem a visão deste jornal, acreditando se tratar de algo minimamente democrático. Tanto na matéria, quanto na postura da esquerda, não há ponderação sobre os riscos de dar poderes ilimitados ao Estado burguês e nem sobre os precedentes criados – comemora-se a punição e ignora-se o modelo autoritário que pode se voltar contra qualquer setor social a qualquer momento.
Nos últimos anos, é a justiça que determina, filtra, censura e prende segundo critérios políticos. O artigo vislumbra uma justiça politizada e transformada em instrumento de disputa, sem reconhecer que esse “endurecimento” nunca se limitou à direita e já atingiu a própria esquerda, como o PCO vivenciou ao ter as redes sociais bloqueadas por decisões do STF em 2022.
O novo presidente do PT, Edinho Silva, por exemplo, reforça em entrevista ao Brasil247 a defesa da repressão como elemento central da democracia. Para ele, a ordem judicial de prisão não é apenas legítima: é educativa, necessária e exemplar, pois enfrenta um risco golpista supostamente liderado por Bolsonaro. Edinho enfatiza que “não podemos recuar” – ou seja, segundo sua visão, ampliar as ferramentas de repressão é não só desejável como obrigatório para preservar as instituições burguesas. Curiosamente, na fala do dirigente petista, quanto mais duras as medidas, mais forte a democracia. Ele reivindica não apenas a prisão, mas o aprofundamento das investigações, elogiando a atuação do STF. Em nenhum momento se questiona a possível instrumentalização política das decisões judiciais.
No fundo, prevalece o ideário de criminalização como norte da política, opondo a defesa da democracia à dúvida, ao contraditório, aos direitos fundamentais do adversário. Demoniza-se a oposição, negando-se a ela inclusive o direito de protestar e de organizar politicamente. O problema, novamente, surge no fato de não haver uma crítica sequer à burguesia, e sim apenas ao inimigo bolsonarista, sendo mais um fantasma do que uma própria ameaça à democracia de fato.
O próprio presidente Lula foi categórico, afirmando que deputados e senadores que atuaram para travar o Congresso deveriam ser alvo de impeachment, pois seriam “os verdadeiros traidores da pátria”. Na prática, aponta para uma atitude que celebra a cassação, a repressão institucional e a criminalização da divergência política, mostrando não ter aprendido nada com a perseguição ora sofrida pelo governo petista. O discurso reforça o clima de perseguição e a ideia de que toda oposição é golpista, criminosa e merecedora de punição exemplar, quando os verdadeiros criminosos que deram um golpe são os que estão nas instituições burguesas hoje gozando da tal democracia. Neste cenário imaginário petista, o Judiciário torna-se árbitro supremo, atuando acima dos demais poderes e cerceando direitos de adversários. Nesse quadro, manifestações de protesto e contestação são rapidamente categorizadas como ataques à democracia, merecedoras de cassação sumária.
A esquerda “chave de cadeia” parece ter abandonado qualquer perspectiva crítica sobre os limites do aparato repressivo. O entusiasmo com prisões, cassações e censuras não se resume ao contexto bolsonarista: representa, na verdade, um espelhamento da lógica autoritária historicamente usada contra a própria esquerda. O que é hoje aplicado contra adversários pode, amanhã, valer contra movimentos populares, sindicatos, partidos de esquerda e todo tipo de organização democrática.
O papel da esquerda deveria ser, por princípio, a crítica à opressão, a defesa dos direitos democráticos universais e a luta por transformações profundas baseadas na mobilização popular. Quando setores da esquerda transformam a repressão em bandeira, tornam-se, paradoxalmente, legitimadores do aparato policial e judicial burguês, hoje dirigido aos bolsonaristas e amanhã aos próprios trabalhadores.




