Na tarde da última quinta-feira (27), Claudia Leitte foi vaiada durante a abertura do carnaval de Salvador. Exigindo que ela “respeitasse o Axé”, a reação da plateia foi resultado do fato de que a cantora trocou a palavra “Iemanjá” por “Rei Yeshua” em uma de suas músicas.
No artigo Sobre as vaias a Claudia Leite, publicado no Brasil247, Oliveiros Marques formula a tese esdrúxula de que as vaias em questão “são um grito contra o genocídio do negro brasileiro”, citando um intelectual que, em sua juventude, chegou a ser membro da Ação Integralista Brasileira (AIB).
“O combustível pontual e absolutamente justificável para o episódio foi a atitude da cantora de retirar da letra de uma de suas músicas o nome de Iemanjá, uma orixá iorubá. Isso levou, inclusive, o Ministério Público da Bahia a abrir uma investigação”, afirma o colunista.
Decerto que aqueles que vaiaram Claudia Leitte podem tê-lo feito por rejeitarem a decisão da cantora de mudar a letra de sua própria música. Influenciados, é claro, pela campanha que a imprensa burguesa e o identitarismo fez contra a artista. No entanto, este não é o motivo pelo qual o Ministério Pública da Bahia abriu uma investigação contra ela.
Fato é que o MP-BA não dá a mínima para o “Axé”, tampouco liga para o que faz Claudia Leitte ou qualquer outro cantor brasileiro. O órgão iniciou uma perseguição à cantora porque viu no caso uma oportunidade para atacar os direitos democráticos da população. Seu objetivo, nesse sentido, é restringir da maneira que for possível a liberdade de expressão, e acuar juridicamente uma artista pelo que disse ou deixou de dizer é justamente uma forma de fazê-lo.
Oliveiros Marques, então, explica o seu motivo para criticar a decisão de Leitte:
“Claudia Leite se construiu como artista através do axé music, corrente cultural absolutamente vinculada à cultura afro-brasileira. E agora, por se dizer evangélica, patrocina um comportamento que corrobora o que Abdias Nascimento caracterizou como ‘O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado’, em texto apresentado em 1977 no Segundo Festival de Artes e Culturas Negras, em Lagos, capital da Nigéria.
Ao retirar a referência ao nome da Rainha do Mar da letra da música, Claudia Leite reproduz o que até pouco tempo atrás fazia o Estado ao confiscar objetos da arte afro-brasileira e as imagens de sentido ritual em terreiros de religiões de matriz africana, levando-os para departamentos de polícia ou escolas de psiquiatria. Fez o mesmo que a ditadura militar fez em determinado censo ao retirar a referência à raça do questionário. Buscou inviabilizar a cultura, a religião, a vivência negra no Brasil.”
Somente um esquerdista histérico poderia afirmar seriamente que um artista trocar uma palavra de uma música que ele mesmo fez é igual aos ataques que a ditadura militar perpetrou contra a cultura nacional.
Fato é que a decisão de Claudia Leitte não fará absolutamente nenhuma diferença para a vida de nenhum negro – e, finalmente, para a vida de ninguém. Basta ver a situação contrária: se Claudia Leitte fosse uma cantora evangélica que se converteu ao “Axé” e, por isso, trocou todas as suas letras gospel para falar sobre os “orixás”, que diferença isso faria para a vida do negro brasileiro?
O que o colunista afirma, fundamentalmente, é que falar alguma coisa tem algum efeito concreto na realidade, que o fato de alguém dizer ou pensar algo altera o que acontece no mundo material. Apesar de ser estranho, isso significaria, por exemplo, que se alguém torcesse muito para que algo acontecesse, essa simples “manifestação” afetaria a chance dessa coisa acontecer ou não. Em outras palavras, bastaria a qualquer pobre torcer para que se torne um milionário da noite para o dia.
Seguindo este caminho, a discussão se reduz a uma conversa entre loucos. Nesse sentido, a campanha contra Claudia Leitte não é uma defesa do negro, mas sim um ataque aos direitos democráticos de toda a população. E a esquerda, assim como aconteceu em todo o último período, participa desse ataque devido à política identitária. Defendendo, a reboque da política do imperialismo, a censura.
O autor continua:
“No tópico ‘O embranquecimento cultural: outra estratégia de genocídio’, Abdias destaca que, diferente do racismo norte-americano ou do existente então na África do Sul — sendo aquele óbvio e este legalizado —, no Brasil o racismo é ‘difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país’. O professor ressalta que, sob a farsa da democracia racial, sobra a negros e negras a ‘assimilação, aculturação, miscigenação’, que escondem a visão eurocêntrica — portanto branca — da ‘intocada crença na inferioridade do africano e seus descendentes’.”
Apesar do “academiquês”, Marques afirma duas coisas:
Primeiramente, diz que, no Brasil, o racismo é um fenômeno oculto, uma tese parecida com o tal racismo estrutural. No entanto, trocar uma palavra na letra de uma música não é racismo. Racismo é quando a polícia militar assassina milhares de brasileiros pobres – e, em sua esmagadora maioria, negros – todos os anos. É quando essa mesma polícia, em conluio com o sistema Judiciário que afirma combater o “racismo” de Claudia Leitte, manda dezenas de milhares de negros para as cadeias anualmente. Isso, sim, é racismo, algo que só está escondido para quem não quer ver.
Em segundo lugar, Oliveiros Marques defende, em linhas gerais, que a miscigenação é algo ruim. Trata-se de um ataque ao povo brasileiro de conjunto que, em sua maioria, é fruto de algum tipo de miscigenação. No âmbito cultural, que é o que interessa nesse debate, isso se expressa pelo fato de que a cultura brasileira mais popular foi toda ela popularizada e desenvolvida pela população negra. Sendo o samba e o futebol os exemplos mais acabados desse fenômeno.
Quando Marques deixa de mencionar quem são as forças ocultas que estariam tentando acabar com a cultura dos negros no Brasil por meio da miscigenação, quer afirmar que isso é culpa de todos os brancos brasileiros. Quer afirmar que isso é culpa do povo. Mais um exemplo de como o identitarismo desvia a luta dos oprimidos para problemas, em sua maioria, inexistentes.
É fato que a burguesia ataca a cultura dos negros. Mas isso acontece porque a burguesia ataca a cultura do povo brasileiro como um todo e, no Brasil, essa cultura é, em sua maioria, proveniente do povo negro, conforme os exemplos citados. A teoria defendida pelo colunista faz com que a luta em defesa da cultura popular se transforme na luta contra os brancos, e não na luta contra a burguesia, contra os poderosos.
Por fim, o autor conclui:
“A cultura é um importante instrumento das elites para o desempenho de seu desejo de controle social e apagamento da presença negra em nossa sociedade — ontem e hoje. Por isso, as vaias a Claudia Leite são um grito contra o genocídio do negro brasileiro, que o professor Abdias Nascimento destaca existir e persistir em nossa sociedade. Que mais gritos como esses ecoem pelos territórios brasileiros. E, se tiver que ser em forma de vaias, que assim seja.”
Não se trata de resistência alguma. Lutar de verdade contra o racismo é lutar pelo fim da polícia militar, lutar pelo fim do sistema carcerário brasileiro. Qualquer coisa que não seja isso é pura enganação, e esse tipo de política, de lutar contra palavras, que é a política identitária, serve somente para desviar a luta do povo negro em prol de suas verdadeiras reivindicações para algo completamente inócuo e secundário.
Essa é a expressão de tudo que há de mais errado com o autoproclamado “movimento negro” brasileiro.