O mundo assistiu, entre curioso e temeroso, ao discurso de posse de Donald Trump, marcadamente ameaçador e triunfalista. No próprio dia 20 de janeiro, o mandatário assinou cerca de 200 ordens executivas (os números são imprecisos), incluindo medidas para eliminar a indústria de energia eólica offshore dos EUA, restrições a imigração e concessão de perdão a 1.500 cidadãos envolvidos na insurreição do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Foram revogadas várias políticas do período de Joe Biden, como ações de diversidade, equidade e inclusão e acordos ligados ao clima, como o Acordo de Paris. Entre os anúncios, o de instalação do Departamento de Eficiência Governamental, com o objetivo de reduzir gastos governamentais, comandado pelo bilionário Elon Musk.
Como já era esperado, sobraram ameaças, mais ou menos veladas, para a América Latina. No discurso de posse Trump afirmou que os países latino-americanos, incluindo o Brasil, “precisam mais de nós do que precisamos deles”, e deixou claro que nas relações bilaterais não haverá igualdade, quem dominará a relação são os EUA. Anunciou também a declaração de emergência nacional na imensa fronteira com o México, visando intensificar as medidas de controle da imigração ilegal. Ameaçou também retomar o controle do Canal do Panamá, alegando inclusive que a China atualmente o controla, impondo tarifas excessivas aos navios americanos. Assinou também uma ordem executiva para renomear o Golfo do México como “Golfo da América”. Trump retomou um tipo de postura imperialista feitas às claras, sem dissimulações, como era o estilo do dissimulado governo anterior, que falava das crianças assassinadas em Gaza, ao mesmo tempo que continuava autorizando o envio de dinheiro para os nazistas de Israel.
Claro que as ações iniciais de Donald Trump foram anunciadas para causar impacto e parte do seu discurso não passa de bravatas. Mas a presença da extrema direita no principal governo imperialista do mundo é sintoma de um processo complexo e muito importante. A vitória acachapante, sob todos os ângulos, de Donald Trump nas eleições norte-americanas, é uma face da gradual e contínua desagregação dos regimes imperialistas chamados “democráticos” e, por tabela, das forças ligadas a ele em todo o mundo. É inegável que a extrema direita conquistou uma parcela majoritária da opinião pública norte-americana e esse fenômeno tem impacto político no mundo todo, em função do peso político e econômico dos EUA na Terra.
A vitória de Trump nos EUA é um sintoma daquela que é, possivelmente, a maior crise política do imperialismo na história. A falência completa do Partido Democrata no processo eleitoral do ano passado representa uma crise sem precedentes na própria política de dominação do imperialismo. Reflete uma inusitada perda de controle político por parte do império, fruto da própria crise econômica vigente. Apesar da desagradável estridência de Trump, sua vitória significa para o imperialismo, um contratempo em sua política, dentro e fora dos EUA.
Exemplo concreto: Joe Biden é o principal responsável pelo genocídio de quase 50 mil palestinos, boa parte mulheres e crianças, no conflito na Palestina. Donald Trump, por seu turno, antes mesmo de sua posse desempenhou um papel significativo no acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza. O seu enviado especial para a Região, Steve Witkoff, esteve no centro das discussões, e da pressão feita em cima de Benjamin Netanyahu para fazer algumas concessões, sem as quais não haveria acordo com as forças de resistência.
Outro caso revelador de que a política de Trump não é a política do chamado deep state é a política que vem anunciando em relação à guerra na Ucrânia. Os EUA precisariam desesperadamente impor uma derrota total à Rússia, militar e economicamente para, em seguida, ir para cima da China, considerado o grande inimigo econômico a ser derrotado. Porém, no seu discurso de posse, apesar de não ter mencionado a guerra na Ucrânia, Trump enfatizou a necessidade de os Estados Unidos priorizarem seus próprios interesses e evitarem envolvimentos em conflitos estrangeiros prolongados. Mais do que isso, o presidente dos EUA reafirmou que será o político que acabará com as guerras que os EUA estão provocando ao redor do mundo. Trump não quer gastar com a guerra da Ucrânia e isso vai acelerar a derrota de Zelensky. Alguns cálculos concluíram que o apoio financeiro dos EUA à Ucrânia é superior a US$ 84 bilhões, sem contar os recentes conjuntos de armamentos fornecidos ao governo da Ucrânia, que somam algo em torno de US$ 8,9 bilhões.
Donald Trump não era o candidato apoiado pelo chamado estado profundo porque defende propostas que não são a dos grandes monopólios que dominam a economia mundial. Portanto, em boa medida, se o governo Trump conseguir cumprir boa parte de suas promessas (o que não será fácil, pois terá que combinar com os “russos”), ele tende a aprofundar enormemente a crise do imperialismo, ou seja, ameaça agravar os problemas que o imperialismo enfrenta. Mas claro, é ilusão também achar que o governo Trump terá liberdade total para exercer suas políticas, como se não tivesse adversários no mundo.
Uma coisa é a retórica triunfalista e arrogante de Trump, outra é a real correlação de forças existente no mundo. A assunção de Trump acontece em uma conjuntura na qual se agravou muito o problema da erosão da influência norte-americana no mundo e a simultânea elevação da influência global do Brics, que em Kazan, no mês de outubro ampliou o bloco. Um dos projetos centrais dos países que constituem o Brics é substituir o dólar como moeda das transações realizadas dentro do bloco. China e Rússia já estão comercializando em suas moedas nacionais. Trump, que já classificou a política de substituição do dólar como uma guerra mundial, em seu discurso de posse ameaçou todas as nações que tentarem criar ou adotar uma moeda alternativa ao dólar, inclusive com a possibilidade concreta de aplicação de tarifas de 100% sobre as exportações desses países para os EUA.
Há uma evidente crise do imperialismo, com uma escalada da guerra ao nível internacional, que tende a piorar nos próximos anos. Com ou sem Trump, os EUA são uma máquina de guerra, que somente para este ano tem um orçamento militar de US$ 895 bilhões, aumento de 10,2% em relação ao ano passado. O orçamento deste ano, prevê aquisições militares como sete navios de guerra, incluindo um porta-aviões nuclear, 200 aeronaves e 300 veículos blindados. Prevê também investimentos pesados em tecnologia, com foco em armas hipersônicas, defesa cibernética e inteligência artificial.
Para efeitos comparativos, a Rússia, que trava uma guerra aberta contra a Otan, tem um orçamento de defesa equivalente a 12,64% do orçamento dos EUA (conforme orçamentos dos dois países, do ano passado). O orçamento dos EUA para a defesa é superior ao acumulado dos dez gastos seguintes no ranking dos maiores orçamentos de defesa dos países. Se Donald Trump cumprir sua promessa de campanha, e conseguir acabar com a guerra da Ucrânia, estará afetando diretamente o lucro dos monopólios diretamente envolvidos com a máquina de guerra.
O vigoroso voluntarismo de Trump terá que enfrentar a crise financeira dos EUA, que é colossal. A dívida pública dos Estados Unidos está em US$ 35 trilhões, correspondo a 125% do PIB norte-americano. Quase US$ 2 bilhões são gastos diariamente apenas em juros da dívida nacional. Mesmo para o país mais rico da Terra, é muito difícil pagar, infinitamente, uma dívida dessa magnitude. O país que sustenta a máquina de guerra mais cara do planeta (não necessariamente a mais eficiente), compromete mais de 30% de sua receita tributária federal com o pagamento de juros. O que permite financiar a dívida é a demanda por dólares existente no mundo. Mas essa demanda tende a diminuir, como estamos assistindo. Com a perda de influência dos EUA no mundo, tudo indica que os países não irão financiar infinitamente a dívida norte-americana.
O problema da dívida pública, que está no centro dos problemas dos EUA, é extremamente complexo. Quem manda no país ganha muito dinheiro com essa roda gigante especulativa: os bancos, grandes empresas, os ricos em geral. Ou seja, 0,5% da população, em prejuízo de 99,5% dos norte-americanos (é como no Brasil). Essa elite, majoritariamente, apoiou a candidata do Partido Democrata. Trump é apoiado por setores da burguesia norte-americana que também estão sendo prejudicados pela máquina de guerra e pela dívida pública. A pobreza nos Estados Unidos, atinge cerca de 12% da população. Essa mesma economia, dominada pelo capital financeiro, precisa importar trabalhadores da América Latina para operar na economia real (fábricas, serviços em geral, limpeza, construção civil).
Para o governo dos EUA conseguir rolar a dívida, a demanda global por dólares e por títulos de dívida dos EUA deve se expandir permanentemente. Resultado que tem sido conseguido, até aqui, pelo argumento da força. Esse verdadeiro castelo de cartas se mantém porque os EUA têm o poder da senhoriagem, ou seja, pode imprimir, sem custo, uma moeda com aceitação e curso internacional. Nenhum outro país no mundo tem essa possibilidade e é exatamente isso que está se esfarelando.
O maior golpe econômico desferido contra os interesses norte-americanos está na área financeira: a substituição do dólar por moedas locais nos países do Brics, nas atividades financeiras internacionais. Processo que já iniciou. Isso irá atingir em cheio o poderio do império americano e mundial, em boa parte assentado na hegemonia do dólar, que fornece aos EUA um privilégio extraordinário. Os dilemas e desafios do governo norte-americano são gigantescos e não serão resolvidos apenas com uma férrea vontade de enfrentá-los.