No artigo intitulado A terceira guerra está em curso. Ela é ideológica, publicado no portal de esquerda Brasil 247 e assinado por Luiz Pellegrini, o jornalista trata de um conflito mundial que já estaria em andamento, mas que,
pela primeira vez em muitos séculos, não seria travada por interesses materiais, mas entre campos ideológicos, identificados por ele como “neo autoritários” e a “democracia liberal”. Naturalmente, a democracia liberal representa os governos responsáveis pela estabilidade do regime político imperialista — que é o que de fato está posto —, e os que ele identifica como “neo autoritários” seriam, consequentemente, as expressões da crise da ditadura imperialista: Donald Trump (EUA), Vladimir Putin (Rússia), Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), entre outros. Curiosamente, entre os expoentes dos “neo autoritários” de Pellegrini estão Benjamin Netaniahu (“Israel”) e Javier Milei (Argentina), e é aqui que a coisa fica divertida.
O autor pode não ter prestado atenção no que está escrevendo, mas tanto Netaniahu quanto Milei são apoiados pela mesma “democracia” que chama Putin de “autoritário”, muito antes de Pellegrini repetir a propaganda imperialista. Essa mesma “democracia” (que poderia ser chamada de “bem”, dado o moralismo explícito do maniqueísmo despolitizado do autor) é extremamente simpática à destruição da economia nacional promovida por Javier Milei na Argentina e à destruição mais literal do Mundo Árabe, incluindo o criminoso genocídio em marcha na Faixa de Gaza, comandado por Netaniahu e apoiado por toda a imprensa do “bem” e bilhões de dólares do governo norte-americano anterior, liderado pelo “democrata” Joe Biden.
Pellegrini coloca Trump como representante do “neo autoritarismo” (ou o “mal”), mas quem sustentou os crimes de Netaniahu contra o povo palestino e sua manutenção no poder foi o próprio Biden, que o autor não se arrisca a colocar no campo do “bem” abertamente, mas deixa claro ser essa a consideração.
É sintomática a falta de clareza do autor sobre o que está realmente tratando. Ele afirma que o conflito entre autoritários e a democracia liberal vai determinar o desfecho da guerra em Gaza e na Ucrânia — justamente duas guerras criadas pelos democratas, os defensores da “democracia”. Os chamados “neo autoritários”, por sua vez, manifestaram publicamente o desejo de encerrar essas guerras, consideradas dispendiosas demais para o contribuinte norte-americano, o que é verdade.
Da análise de Pellegrini, temos que o “bem” está em conflito com o “mal” porque quer guerras se multiplicando em todo planeta, enquanto o “mal” é uma ameaça por resistir a essa tendência do “bem” e se esforçar para refrear a máquina de guerras. Teria Caetano Veloso tido um vislumbre desse debate quando compôs sua clássica “Tigresa”?
O autor ignora completamente essa realidade e insiste em afirmar que a guerra estaria sendo causada principalmente por ataques dos tais “neo autoritários”. Não é verdade.
Os chamados “neo autoritários” são a expressão da resistência de setores menores e mais frágeis da burguesia, que estão sendo esmagados pela política neoliberal e se insurgem particularmente contra a desindustrialização dos países mais desenvolvidos, a financeirização que asfixia os negócios menos robustos e aquilo que Trump chamou de “guerras intermináveis”, a política belicosa e altamente dispendiosa, necessária para manter a ditadura imperialista e a rapina dos países atrasados. Para além das fantasias infantis de Pellegrini, esse é o fundo material e social da luta entre o que ele chama de “democráticos” e “neoautoritários”, ou seja, o imperialismo e as burguesias domésticas.
Outra parte que merece destaque é quando ele afirma que os “autoritaristas” atacam e denunciam a prática democrática — ou seja, o regime do imperialismo. Isso é estranho de se afirmar, pois, se tais ataques não rendessem popularidade, não seriam feitos.
O fato de se tornarem populares ao fazer tais denúncias demonstra que, por mais que cada um o faça a partir de uma perspectiva geralmente direitista, o que expressam é o repúdio mundial ao regime imperialista. É essa a substância do regime político que Pellegrini defende, e ainda acrescenta:
“Como diz o jornalista italiano Ezio Mauro em editorial do jornal La Reppublica: ‘o autocrata nasce dentro da regra democrática, por meio de eleições livres, e imediatamente dela se separa, pois, a partir do momento em que assume o poder, ele é a regra, e tudo deve se subordinar a uma hierarquia soberana que não conhece limites nem aceita restrições. Assim, toma forma uma soberania desconstitucionalizada, que já não pode se conter dentro dos limites do Estado de Direito, mas extrapola a norma, ignorando a separação de poderes e o equilíbrio institucional. O invólucro do sistema parece intacto – com a competição entre partidos, a liberdade da disputa eleitoral, a transferência de poder do cidadão para o eleito –, mas, por dentro, a substância democrática se corrompe, degrada e inevitavelmente decai’.”
Importante destacar que quem está ignorando a separação de poderes, no Brasil e no mundo, é o Judiciário. Em todos os lugares, ele é apresentado como o guardião da democracia, ou seja, a trincheira segura do regime imperialista.
É o Judiciário que, no Brasil, na França, nos EUA e no mundo inteiro, tem atuado para disciplinar os regimes políticos, sempre sob a máscara de defesa da democracia. Isso mostra que o autor, sim, se deixou levar por um sistema ideológico doido a ponto de perder o contato com a realidade e não entender mais o que está acontecendo: quem está se instaurando como poder acima dos demais — um verdadeiro bonapartista — é o Judiciário, justamente aquele que parte da esquerda insiste em defender, sob o manto uníssono de que as arbitrariedades são necessárias para combater a extrema direita.
A conclusão que deve chamar atenção, sobretudo da esquerda, é que, segundo o autor, quem assume o poder deve se limitar a um conjunto muito restrito de ações — o que jamais deve ser rompido, sequer questionado. O autor talvez não perceba, mas a esquerda brasileira precisa refletir sobre esse tipo de colocação à luz do que está acontecendo com o governo Lula.
Eleito para atender os trabalhadores, o presidente Lula simplesmente não consegue governar, a ponto de enfrentar agora uma crise terrível de popularidade. Não consegue fazer a economia girar, não consegue retomar direitos perdidos, abandonou a promessa de rever privatizações criminosas cometidas por Bolsonaro… em resumo, não consegue fazer nada.
A ditadura do imperialismo impôs limites a todas as formas de atuação possíveis para beneficiar o povo: aumentar salários, melhorar a renda dos brasileiros, criar empregos, enfim, cumprir aquilo que prometeu. E, após três anos, amarga uma queda histórica de popularidade.
Eis a “democracia” de Pellegrini, porém à esquerda, cabe olhar para essa situação e se perguntar: é essa crise do governo Lula que realmente queremos?