Em 29 de novembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que jornais poderão ser responsabilizados por declarações “comprovadamente injuriosas” ditas por seus entrevistados contra terceiros. Em março de 2025, o Supremo ajustou o entendimento, elaborado pelo ministro Alexandre de Moraes, e definiu que os veículos só poderão ser processados se ficar comprovado conhecimento prévio da falsidade da afirmação ou culpa grave:
“Na hipótese de publicação de entrevista por quaisquer meios em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se comprovada sua má-fé caracterizada:
1) pelo dolo demonstrado em razão do conhecimento prévio da falsidade da declaração ou
2) [por] culpa grave decorrente da evidente negligência na apuração da verdade do fato e na sua divulgação ao público sem resposta do terceiro ofendido ou ao menos em busca do contraditório pelo veículo”, afirma a decisão do STF.
A determinação foi alvo de críticas por parte de entidades representativas de jornais e jornalistas. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), por exemplo, apresentou recurso contra a tese antes de ser reajustada. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) também emitiu declarações contrárias à redação inicial da medida.
Ao Estadão, o advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade, de expressão, afirmou que a decisão pode levar as redações à “autocensura”:
“O que o STF fez foi praticamente tornar a atividade jornalística uma atividade de risco. Ocorre que o exercício da liberdade de imprensa é um direito e transformar o exercício do direito em um risco é absolutamente contraditório. É um entendimento totalmente equivocado do papel da imprensa”, afirma.
Esta não é a primeira vez que uma medida deste tipo é aprovada. Em 31 de outubro de 1923, o então presidente da República Arthur da Silva Bernardes publicou o decreto nº 4.743, cujo objetivo explícito era de regular a liberdade de imprensa.
A medida tipificava os crimes de calúnia e difamação quando “cometidos pela imprensa”. No caso da calúnia, por exemplo, determinava: “prisão por quatro meses a um ano e multa de 1:000$ a 10:000$, elevada a pena para seis meses a dois anos de prisão e multa de 2:500$ a 10:000$, se o crime for contra corporação que exerça autoridade pública, ou contra agente ou depositário desta.”
O texto era especialmente duro no que diz respeito à censura contra críticas direcionadas a figuras públicas e ao presidente:
“Art. 3º A ofensa feita pela imprensa ao Presidente da República no exercício de suas funções ou fora dele, e a algum soberano ou chefe de Estado estrangeiro, ou aos seus representantes diplomáticos, quando não revista caracteres da calúnia ou injuria, é punida com a pena de prisão por três a nove meses e multa de 4:000$ a 20:000$000.”
Mais impactante que isso é o fato de que, a partir da publicação do decreto, os editores passaram a ser responsáveis por tudo que era publicado nos jornais que dirigiam. Para garantir que a censura fosse aplicada, passava a responsabilidade legal para o dono da gráfica que imprimiu o jornal considerado criminoso. Caso este não fosse conhecido ou não cumprisse com os pré-requisitos legais para a imputação, a responsabilidade era transferida para os vendedores ou distribuidores da publicação.
“Art. 10. Pelos abusos de liberdade de imprensa são responsáveis sucessivamente:
1º, o autor, sendo pessoa idônea, em condições de responder pecuniariamente pelas multas e despesas judiciais, e residente no país, salvo tratando-se de reprodução feita sem o seu consentimento, caso em que responderá quem a tiver feito;
2º, o editor, si se verificarem a seu respeito as mesmas condições exigidas em relação ao autor, e este não for conhecido, ou não as reunir;
3º. o dono da oficina ou estabelecimento, onde se tiver feito a publicação; e, na sua falta ou ausência do país, quem o estiver representando, desde que se não verifique o disposto em os números anteriores;
4º, os vendedores ou distribuidores, quando não constar quais sejam ou autores ou editores, nem a oficina onde tiver sido feita a impressão”, diz a medida.
Ou seja, o decreto nº 4.743 servia para garantir que alguém fosse responsabilizado pela publicação daquilo que contrariava as autoridades. Redatores e editores precisavam se preocupar ao denunciar os governantes eleitos sob risco de serem presos. Um ataque brutal à liberdade de imprensa e a uma das obrigações fundamentais do jornalismo com a sociedade.
É espantoso notar a similaridade entre o que foi fixado pelo Supremo Tribunal Federal e o que Bernardes decidiu em plena República Velha. Pode-se argumentar que, no caso do Supremo, a legislação é ainda mais antidemocrática: enquanto o presidente mineiro responsabilizava os jornais por aquilo que eles escreviam, Moraes quer culpar os veículos de imprensa por algo que um terceiro declarou.
A redação atual da medida, apesar de ter sido ajustada após pressão por parte da categoria jornalística, ainda é vaga o suficiente para permitir que o Judiciário faça o que bem entender com seus desafetos. Afinal, basta um juiz decidir que determinado jornal agiu com “evidente negligência na apuração da verdade do fato” — um critério arbitrário, principalmente se tratando da redação de uma lei — para processar e multar quem quer que seja.
Nesse sentido, a comparação entre os dois períodos serve para demonstrar que o País caminha para um regime cada vez mais autoritário. Com leis que, criadas pelo Judiciário, um Poder não eleito, enterram as liberdades de expressão e de imprensa e, de maneira geral, os direitos democráticos da população.



