O golpe de Estado contra Bashar al-Assad mostrou um dos flancos de um grande setor da esquerda mundial: seu apoio total ao imperialismo. Defenderam o golpe apoiado pelos EUA e “Israel” contra um governo nacionalista aliado dos palestinos e de todo o Eixo da Resistência. A direita se aproveita disso para pressionar ainda mais à esquerda na direção do imperialismo.
Foi o que fez o colunista do sítio Poder 360 Marcelo Coelho com seu artigo Quando a esquerda cai no jogo duplo. Ele tenta classificar a política tradicional da esquerda de lutar contra o imperialismo como um “jogo duplo” que é contra a “democracia”.
O autor começa descrevendo a queda de Assad como algo popular: “o mundo todo viu na TV as multidões que comemoravam, na Síria, a queda do ditador Bashar al-Assad”. Essas multidões não foram tão grandes assim comparadas as dezenas de bilhões de dólares enviadas pelos EUA à Síria para derrubar Assad. O autor – de direita obviamente -, não comenta que toda a oposição contra Assad era na verdade uma operação brutal do imperialismo para derrubar o seu governo.
Ele segue: “sim, houve uma guerra civil também – e o Exército Islâmico era ainda mais criminoso do que os seguidores de al-Assad”. Curiosamente, após afirmar isso, Coelho tenta convencer o leitor que a realidade era outra e Assad, enfim, era pior que o Estado Islâmico.
O autor ignora que o HTS que tomou o poder é na verdade a Al-Qaeda na Síria, praticamente a mesma organização que o EI e não é só isso: Al-Jolani, o líder do HTS foi o vice-líder do Estado Islâmico no seu auge! A imprensa maquiou o mercenário e agora tenta convencer todos que ele mudou, na prática o “Exército Islâmico”, que realmente era muito pior que Assad, tomou o poder.
Então o autor chega a sua tese principal, apresentando como um absurdo que um setor da esquerda considera a queda de Assad uma derrota dos oprimidos:
“O espantoso, entretanto, é que alguns setores de esquerda já estejam julgando os acontecimentos –e de forma negativa. Um intelectual muito respeitado nos países de língua inglesa, e já traduzido no Brasil, suspira com tristeza. A queda de al-Assad, escreve Tariq Ali, ‘é uma grande derrota para o mundo árabe’. O renomado colaborador da New Left Review compara o fim do regime sírio a um ‘mini-1967’, aludindo à fulminante vitória israelense contra o Egito e seus aliados na chamada Guerra dos 6 Dias”.
O grande problema de Ali é que ele é um militante da antiga esquerda, um homem de 80 anos que lutou na sua juventude contra as intervenções do imperialismo na América Latina, no Vietnã, em Cuba, etc. Ele compreende que o que existe no mundo não é uma luta entre a “democracia” representada pelos EUA, e as “ditaduras” de Assad, Putin, Khamenei e quem quer que a imprensa taxe de ditador. O que existe é a luta dos países oprimidos contra o imperialismo, que os oprime.
No caso da Síria, trata-se de um clássico caso de nação onde há um governo nacionalista que é vítima da intervenção imperialista. Há 20 anos isso não seria polêmico, mas hoje, com a submissão de grande parte da esquerda para o imperialismo, os autores da direita se sentem confortáveis em fazer essa crítica. Coelho tenta explicar:
“O problema, na minha opinião, é que com isso se repete uma espécie de vício intelectual que vem se tornando comuníssimo em setores da esquerda. Trata-se de um pensamento duplo. O sujeito diz: ‘Não sou a favor de ditaduras, mas a queda dessa ditadura é uma péssima notícia’. Tariq Ali não derrama lágrimas por al-Assad. Mas na prática está derramando, sim. É muito diferente de dizer: ‘Não sou a favor da ditadura X, mas o que veio em seguida foi muito pior’. Aí, estamos comparando 2 males, sem apoiar ninguém”.
O único “vício” real que ele levanta é a esquerda considerar algum regime nacionalista como “ditadura”. Tradicionalmente a esquerda utiliza o termo ditadura quando os governos são impostos pelo imperialismo.
A Ditadura Militar de 1964 no Brasil, a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba, a ditadura de Somoza na Nicarágua, a ditadura das monarquias do Golfo, etc. Quando o regime é nacionalista, a esquerda nunca focou em denunciar os males do regime, mas sim em denunciar que o imperialismo está intervindo no país.
Os erros internos do regime nacionalista são secundários e, na conjuntura de guerra civil, como aconteceu na Síria, é obrigação da esquerda apoiar o país atrasado contra os EUA. Por essa lógica quem não era marxista deveria ficar contra o Vietnã, pois os guerrilheiros era do Partido Comunista. No entanto, toda a esquerda mundial defendia os vietnamitas sem questionar em nada as suas contradições internas.
Até Sadam Hussein, esse era o normal. A esquerda ficou contra a intervenção dos EUA no Iraque mesmo sabendo que isso seria bom para o governo de Sadam. Isso porque essa realidade é muito facilmente compreendida, um regime pode ser muito ruim, mas certamente o que o imperialismo quer impor é ainda pior. É então que o autor chega ao ponto principal, que não se pode afirmar que a queda de Assad foi uma derrota dos oprimidos:
“É muito mais grave dizer que ‘a queda da ditadura X é uma tragédia’, sem nem mesmo saber o que virá em seguida. Essa é a atitude de Tariq Ali, e de tantos esquerdistas simpatizantes de ditaduras sanguinárias”. ‘Não sou a favor de Putin, mas… torço para que as democracias europeias que apoiam a Ucrânia terminem quebrando a cara.’ ‘Concordo que existe uma ditadura na Nicarágua, mas se ela acabar isso será uma vitória americana, e isso sim é que seria uma tragédia’.
A resposta para isso é simples. Não é preciso saber o que virá em seguida para apoiar ou não um governo. A questão é quem está lutando.
Se o imperialismo está contra Putin é porque quer oprimir ainda mais os russos. Se o imperialismo está contra Assad é porque quer oprimir ainda mais todos o Oriente Médio. Se está contra a Nicarágua, Cuba e a Venezuela é porque quer oprimir ainda mais os latino americanos.
Não importa qual seja o nível de opressão interna dos governos, seja os mais direitistas como Assad ou os mais esquerdistas como Maduro, no fim a vitória do imperialismo só pode piorar a situação do país. Por fim, Coelho conclui:
“Com isso, sacrifica-se a meu ver todo ideal de democracia, de direitos humanos, de luta em prol dos torturados e desaparecidos. Aceita-se tudo, desde que os Estados Unidos percam, e que o Irã, a Coreia do Norte, a Rússia e a China, continuem fortalecidos”.
Aqui vale uma pergunta: existe país no mundo que desrespeita mais o ideal da democracia e os direitos humanos do que os Estados Unidos da América? Até mesmo no seu argumento, que é incorreto por não analisar a luta das classes envolvidas, ele está errado. Mais ditatorial que uma intervenção dos EUA? Impossível.