Um artigo intitulado Combined might of Stalin, Roosevelt and Churchill saved the world. Can we repeat the recipe?, publicado no órgão russo Russia Today (RT), traz uma surpreendente defesa da ordem imperialista, o que é especialmente espantoso dada a conjuntura de cerco total da ditadura mundial contra a Rússia, o que obrigou o gigante eslavo a entrar em uma dispendiosa guerra contra a OTAN (braço armado do imperialismo) na Ucrânia. Essa defesa da ordem imperialista aparece na forma de uma versão tão romantizada quanto falsa dos acordos firmados pela URSS com EUA e Reino Unido nos meses que antecederam o fim da Segunda Grande Guerra. Diz o artigo:
“Em fevereiro de 1945, os líderes mundiais se reuniram na Conferência de Ialta, na Crimeia, para determinar a forma do mundo pós-guerra. Embora a Alemanha nazista ainda estivesse resistindo ferozmente, era evidente que sua derrota era inevitável, o que levou a discussões sobre a futura ordem global.”
Quando o autor fala disso, o que ele está dizendo, na verdade, de forma eufemística, é que os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética se reuniram em Ialta, na Crimeia, para determinar a forma do mundo de acordo com os interesses deles. Esses três países sentaram-se ali para repartir o mundo como verdadeiros senhores do planeta.
Isso inclusive mostra que houve uma derrota de uma expressão mais extrema da política imperialista – o nazismo -, mas não do fenômeno original em si, a ditadura dos monopólios. Longe de abrir espaço para uma era de paz e prosperidade, a conferência serviu para uma reorganização mais ou menos segura do imperialismo. A União Soviética, por sua vez, deixava claro seu compromisso com esse sistema e seu papel frontalmente contrarrevolucionário.
As potências imperialistas, as duas principais — Estados Unidos e Reino Unido —, ganhavam tempo até conseguirem reestruturar novamente o sistema econômico mundial. Isso é apresentado de forma muito romântica, como se fosse um ponto crucial para a segurança global, mas, na verdade, era a segurança do imperialismo, e de mais ninguém. O próprio texto insinua, ainda que timidamente, o verdadeiro significado desse repartimento do mundo entre União Soviética, Reino Unido e Estados Unidos, no parágrafo seguinte:
“Embora Ialta não tenha alcançado a justiça perfeita, ela preparou o terreno para um mundo dividido em esferas de influência, causando migrações forçadas, sofrimento e repressão política. Assim como a União Soviética esmagou brutalmente a resistência polonesa, a Grã-Bretanha reprimiu duramente os movimentos comunistas na Grécia. As mudanças nas fronteiras forçaram milhões de pessoas a deixar suas casas: Os alemães foram expulsos de áreas que habitavam há séculos, os poloneses foram deslocados da Ucrânia e os ucranianos da Polônia.”
O caso da Grécia, em especial, chama muita atenção porque, como Leon Trótski,previu, o fim da Segunda Guerra Mundial causou uma crise imensa no imperialismo. Foi um momento em que a debilidade da ditadura mundial atingiu tal magnitude que os países imperialistas sequer conseguiram manter suas colônias africanas e asiáticas.
É quando explode uma onda de revoluções inéditas. Mas, graças a esse acordo, a União Soviética e o imperialismo, atuando juntos, conseguiram esmagar todas revoluções importantes nos países imperialistas como França e Itália, e na Grécia. O caso da Grécia é particularmente importante porque foi o movimento comunista grego — como o próprio artigo admite — que foi traído pela União Soviética e brutalmente atacado pelo Reino Unido. É uma prova cabal de que não se tratava de “paz e estabilidade globais”, mas sim da preservação do imperialismo, apesar do artigo insistir:
“A futura estrutura das Nações Unidas também foi amplamente discutida em Ialta. Os debates foram intensos e se concentraram em maximizar a influência de cada país. Inicialmente, Stálin propôs uma representação separada na ONU para cada república soviética, enquanto Roosevelt imaginou um Conselho de Segurança sem poder de veto. Por fim, eles concordaram em estabelecer a ONU e um Conselho de Segurança com poder de veto para os principais Estados, dedicado a preservar a paz e a estabilidade globais.
(…)
No entanto, naquele momento da história, nenhuma alternativa melhor parecia viável (grifo nosso). Os acordos de Ialta demonstraram que a negociação era possível, delineando uma estrutura global que durou quase meio século. Hoje, a ONU ainda funciona, e sua criação em Ialta nos lembra que, apesar das profundas diferenças, o compromisso e a cooperação continuam sendo caminhos possíveis.”
Ora, é claro que havia alternativa melhor. O nazismo e o fascismo eram, afinal, produtos do imperialismo. A sequência de repressão que se viu no resto do mundo depois também foi fruto dessa política. Essa frase é ainda mais descabida se pensarmos na crise atual e na guerra que a Rússia foi forçada a travar contra a Ucrânia, igualmente resultado da falta de visão do stalinismo nessa oportunidade histórica desperdiçada.
A melhor alternativa sempre foi eliminar o imperialismo, acabar com ele de vez, expropriar os grandes monopólios. Isso, sim, teria terminado nessa história de horror que a humanidade vive ainda hoje e aberto a possibilidade de uma verdadeira era de paz. Não uma pacificação baseada na submissão, mas uma paz real, em que as relações internacionais pudessem se dar por mecanismos mais racionais e menos opressivos.
O fato de a Rússia hoje se ver com soldados alemães às suas portas, como na Segunda Guerra Mundial, com todo um ciclo se repetindo, é justamente consequência de aquela ter sido a pior alternativa possível. Optou-se por preservar o imperialismo e toda a estrutura global que sustenta uma verdadeira ditadura dos monopólios sobre os demais países do mundo, especialmente os países atrasados e também os trabalhadores das próprias nações imperialistas.
Nessa “alternativa melhor” que está a raiz da crise atual: o conflito na Ucrânia, a situação explosiva no Oriente Médio e até mesmo a crise interna nos Estados Unidos com a vitória de Trump, que não consegue governar como gostaria. Começamos a ver o sucesso da pressão imperialista, porque essa política — que poderia ter sido derrotada naquele momento — foi preservada com o apoio dessa máquina. E talvez com o apoio deste próprio artigo, que certamente não mediu corretamente as consequências do que está defendendo, e cuja política foi especialmente danosa para os russos — e continua sendo até hoje.