Num de seus discursos mais famosos, Margaret Thatcher declarou que a sociedade não existia, que era não mais que um coletivo de homens, mulheres e famílias. Segundo a “dama de ferro”, a responsabilidade individual era o motor do coletivo, inclusive do governo. A tese já foi rebatida por muitas pessoas, mas gostaríamos de acrescentar nossa contribuição sob um ângulo em particular, tema de nosso espaço neste diário, a tecnologia.
Em nosso meio, especialmente entre engenheiros de software e eletrônica, a ideia do indivíduo como motor da inovação é recorrente. Quantas pessoas já não reimplementaram determinado software de maneira mais eficiente, sendo que o original havia sido desenvolvido por centenas de programadores numa corporação? Ou não fizeram um equipamento eletrônico de maior qualidade que o disponível comercialmente com muito menos recursos?
Exemplos como esse parecem corroborar a tese neoliberal, mas comprovam seu completo oposto. Têm mais a dizer sobre a ineficiência das grandes empresas capitalistas, monopolistas e burocratizadas, do que sobre o potencial inovador e criador do indivíduo, como alguém que existe fora da sociedade.
O segredo da produtividade desses indivíduos está em suas ferramentas, sendo atualmente a mais essencial delas o computador. Esse indivíduo altamente produtivo e inovador conseguiria, em toda a sua capacidade, produzir seu próprio computador sozinho? A pergunta é retórica, mas àqueles que acreditam que tal feito seja possível, recomendamos o canal do YouTube “Primitive Technology”, do australiano John Plant, que busca demonstrar o desenvolvimento tecnológico da Idade da Pedra aos dias de hoje.
Pelos próprios requisitos do processo produtivo, do manejo de gases tóxicos e explosivos, à produção de água de alta pureza e à manutenção da temperatura, pressão e limpeza das salas limpas, a fabricação em larga escala de circuitos integrados, mesmo dos mais simples, requer uma infraestrutura gigantesca. A fábrica lida somente com o manejo dos insumos necessários para a produção, mas o isolamento desses gases e a obtenção de silício de alta pureza, por exemplo, são normalmente realizados em outras instalações. Se entrarmos na fabricação dos meios de produção utilizados por uma fábrica de chips, encontraremos talvez a cadeia produtiva mais complexa da história da humanidade. Complexa de tal forma que podemos dizer seguramente que, se considerarmos da extração da matéria-prima, à construção da fábrica e dos meios de produção, à própria cadeia produtiva operante, milhões de seres humanos são necessários para um computador existir na casa de alguém.
Todas essas pessoas certamente não caberiam nas casas dos inovadores que aqui descrevemos. Dizemos isso não para desmerecer trabalhos verdadeiramente criativos conduzidos por uma pessoa, ou equipes pequenas, mas para dizer que esse trabalho, de alta intensidade, só é possível numa sociedade avançada como a nossa. Os computadores são um caso extremo disso: objetos relativamente pequenos e portáteis (principalmente se pensarmos em celulares, que nada mais são que computadores de bolso), extremamente poderosos, que ampliam as capacidades humanas em muitas ordens de magnitude. Conecte um dispositivo como esse à rede mundial de computadores (mantida por milhões de pessoas) e um ser humano do século XXI parece adquirir capacidades sobre-humanas.
Daí vem a ilusão. Mais do que um motorista de um automóvel que pilota com facilidade esse maquinário extremamente complexo e atravessa longas distâncias muito rapidamente, o usuário de computador faz uso de seu dispositivo como se fosse uma extensão de seu corpo. Guardadas certas restrições, a invenção é tão bem construída que é transparente ao usuário, mesmo alguém experiente e mais consciente das complexidades como engenheiros eletrônicos ou de software.
Possivelmente não há um único ser humano no planeta que entenda em profundidade todas as etapas produtivas necessárias para que alguém possa acessar um sítio como o ChatGPT e fazer uma simples pesquisa. Há uma glorificação dessas empresas do Vale do Silício, como a OpenAI, que atuam na camada mais alta dessa cadeia de alta tecnologia, mas seus escritórios têm poucos funcionários justamente porque as ferramentas a que têm acesso fazem com que a intensidade de seu trabalho seja altíssima. Infelizmente absorvem de forma parasitária a maioria do mais-valia extraída em cada etapa da cadeia. Esse fenômeno social faz com que figuras como Sam Altman, Elon Musk e outros executivos dessas empresas de alta tecnologia apresentem-se como semi-deuses, mestres da tecnologia, grandes cientistas. São, na melhor das hipóteses, ótimos marqueteiros, e sabem manejar as emoções de especuladores financeiros cada vez mais ignorantes sobre processos produtivos cada vez mais complexos.
De certa forma, é um milagre que essa sociedade caótica, fruto do capitalismo decadente, consiga produzir produtos de tamanha sofisticação numa cadeia produtiva global. É um embrião da sociedade socialista que vamos construir. Nela as capacidades individuais serão expandidas ainda mais, e estarão disponíveis, em algum momento, a todos os seres humanos. O indivíduo será muito mais poderoso do que é hoje, mas terá certamente a humildade de reconhecer que é somente fruto de uma sociedade altamente desenvolvida.





