José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Como sistema da dívida pública engole desenvolvimento brasileiro

"Não há dúvidas de que, entre o conjunto de grandes problemas que o país terá que enfrentar para se desenvolver, a dívida pública está entre os principais"

No dia 6 de abril, em pleno domingo, tive a oportunidade de participar, como palestrante, de um excelente debate sobre o problema da dívida pública no Brasil. Organizado por militantes do movimento popular, a discussão contou com relativamente pouca gente, porém foi de alta qualidade e possibilitou a todos uma preciosa reflexão sobre o tema. Destaco abaixo algumas das conclusões gerais a que chegamos no debate, e que podem ser úteis para outros interessados no assunto: 

1) A dívida pública é um fato que ilustra o subdesenvolvimento brasileiro e indica que o imperialismo é quem controla boa parte da economia brasileira:

Os gastos com a dívida, durante muitas décadas, a conivência das suas consequências por parte da classe dominante, é um sintoma de um país quase escravizado, que destina uma parcela significativa do seu Produto Interno Bruto (PIB) para os serviços da dívida. O endividamento público poderia ser utilizado para alavancar a economia, como fazem outros países, que mantém os gastos com a dívida em patamares baixos em relação ao PIB e usam os recursos para promover o desenvolvimento. Por exemplo, o Japão, apesar de ter a maior taxa de endividamento do mundo, cerca de 250% do PIB, gasta apenas 0,12% do produto com os juros. ​As elites no Brasil são tão subservientes, que ficam mendigando às agências de classificação de risco (fina flor do vampirismo financeiro), melhorias na posição do país, quando se sabe que uma boa classificação nessas agencias, significa realizar uma política fiscal criminosa contra a maioria da população.  

2) A dívida trava o Brasil há cerca de meio século, pelo menos:

Os gastos excessivos com a dívida, e o consequente baixo investimento estatal na área social e produtiva, não é um fato eventual, ou que tenha acontecido nos últimos dois ou três anos. Na realidade, há décadas que o Brasil alimenta esse parasita gigante. Uma das heranças malditas que a ditadura militar implantada em 1964 deixou, foi justamente o endividamento externo: no golpe, em abril, a dívida externa do Brasil totalizava US$ 3 bilhões; quando acabou a ditadura em 1985, a dívida tinha chegado a US$ 105 bilhões. Não foi por acaso que, em 20 de fevereiro de 1987, no meio de uma grave crise econômica, José Sarney suspendeu unilateralmente e por prazo indeterminado o pagamento dos juros da dívida externa brasileira. Sarney era filho dileto do regime de 1964, portanto a atitude nada teve a ver com soberania nacional, mas foi tomada exclusivamente por falta de recursos, já que as reservas internacionais do Brasil estavam em míseros cerca de US$ 3 bilhões. 

3) O Brasil gasta em excesso com o serviço da dívida:

Todo ano, o país gasta 6%, 7%, 8% ou mais do PIB com os chamados serviços da dívida. Conforme o famoso gráfico de pizza da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), quase metade do orçamento federal é consumido com os serviços da dívida pública. Em 2024 a despesa só com o pagamento dos juros da dívida pública totalizou R$ 950,4 bilhões, o maior valor da série histórica, iniciada em 2002. Esses gastos representam 8,72% do PIB do ano passado 2024. Foi um gasto superior ao da Previdência Social, fundamental para cerca de 77 milhões de brasileiros. Os sucessivos governos, neste quadro, se limitam a fazer política pública, com o que sobra, após o pagamento dos serviços da dívida. 

4) O chamado “problema fiscal” do Brasil é o serviço da dívida pública:

Em 2024, o governo federal do Brasil registrou um resultado nominal consolidado de déficit de R$ 998 bilhões. Esse resultado inclui tanto o resultado primário quanto os encargos da dívida pública. Esse déficit nominal representou aproximadamente 9,2% do PIB nacional. O setor público consolidado –formado por União, Estados, municípios e estatais– registrou déficit nominal de R$ 998,0 bilhões em 2024. Como vimos, a despesa com juros chegou a R$ 950,4 bilhões. Portanto, não fosse os gastos com a dívida, o Brasil praticamente não teria déficit público. No entanto, toda a construção conceitual que os economistas e analistas do sistema fazem é de que o déficit nominal seria culpa dos gastos sociais: bolsa família, previdência, saúde e educação. Os juros altos e a dívida, seriam uma consequência do “descontrole fiscal” e não sua causa. Como o governo gasta demais com “medidas populistas”, o Banco Central é forçado a manter juros nas alturas e cresce a dívida pública em relação ao PIB (atualmente está em 78,6%, a oitava do mundo).

5)  A dívida trava o desenvolvimento e a reindustrialização do país:

O governo é forçado a trabalhar na margem do orçamento, em função dos gastos com a dívida. Os investimentos na Nova Indústria Brasil (NIB), previstos para o período 2023 a 2026, de R$ 1,2 trilhão, representa uma fração do que é gasto com a dívida. Nos últimos 12 meses s despesas com a dívida já devem ter chegado a R$ 1 trilhão, praticamente todo o orçamento da NIB para quatro anos. Nesse sentido, a dívida, além de gerar muito dinheiro para os especuladores e impedir investimentos sociais, ainda tem o papel de travar o desenvolvimento do Brasil, o que é de grande interesse dos países imperialistas.

6) A dívida é um “sistema”:

A dívida púbica brasileira não é um mecanismo de alavancagem do desenvolvimento, e sim uma engrenagem para gerar lucros infinitos para os rentistas. Além dos gastos com a dívida, por si só, esse fenômeno pode também ser constatado pelo lucro dos bancos no Brasil, que estão sempre entre os maiores do mundo. O lucro líquido dos 5 maiores bancos em 2024 (BB, CEF, Santander, Bradesco, Itaú) foi de R$ 125,6 bilhões, 20% de crescimento em relação ao ano anterior. O Brasil cresceu 3,4%, o lucro dos bancos cresceu 6,6 vezes mais. Esse sistema funciona baseado em mentiras e dissimulações. Ao contrário do que querem fazer parecer, a dívida é basicamente um mecanismo exclusivamente financeiro, para transferir o excedente público para a mão dos rentistas, boa parte inclusive, estrangeiros. 

7) A dívida é ilegítima:

O esquema está lotado de fraudes e ilegalidades, por isso não se consegue aprovar no Congresso Nacional uma auditoria da dívida pública. No caso de uma auditoria, muitos aspectos obscuros viriam à luz, o que não interessa aos beneficiários do sistema, que ganham muito dinheiro. Por exemplo, as taxas de juros escorchantes que reajustam os títulos da dívida, é uma espécie de esquema de roubo permanente. A desculpa para o aumento dos juros é a ameaça inflacionária. O Brasil encerrou 2024 com uma inflação de 4,83% (IPCA), puxada por “Alimentação e Bebidas”, que teve o maior impacto no índice anual, acumulando alta de 7,69% e gasolina, com o maior impacto individual sobre a inflação do ano, com alta de 9,71% e contribuição de 0,48 pontos percentuais. Que influência poderia ter a taxa de juros sobre esses preços? Quem vai comer menos tomate ou laranja, por conta do aumento da taxa Selic?  A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) realizada em 2009 e 2010, que não deu em nada, constatou inúmeras fraudes e irregularidades. Por conta desses e de muitos outros fatores, a dívida pública é ilegítima. 

8) Toda a política econômica do governo acaba se adequando às necessidades de pagamento da dívida:

É o rabo da dívida balançando o cachorro da economia brasileira. Todo o debate sobre finanças públicas no Brasil é feito com base no conceito de resultado primário. ​O resultado primário é um indicador fiscal que mede a diferença entre todas as receitas e despesas de um governo, excluindo apenas uma, que são os gastos com juros da dívida pública. Ou seja, toda a discussão sobre o resultado financeiro do governo, é realizada sobre os gastos primários (educação, saúde, defesa nacional, previdência social), ignorando o fundamental, que são os gastos com a dívida pública. O resultado disso, é o de que, perante a impossibilidade de enfrentar os rentistas, todo o esforço dos governos é reduzir os gastos primários. É exatamente por isso que, de 1985 para cá,  o Brasil já realizou sete reformas da previdência, todas elas retirando direitos da população. E, apesar dos gastos com a dívida nos últimos 12 meses, já terem alcançado R$ 1 trilhão, já estão falando em uma nova “reforma” da previdência. 

9) Os gastos com a dívida restringem o combate à pobreza:

Enquanto o país destina mais de 8% do PIB para o pagamento dos serviços da dívida, o Programa Bolsa Família atende aproximadamente 20,5 milhões de famílias, cerca de 61,5 milhões de pessoas e custa R$ 169,5 bilhões (gasto estimado em 2024). Os gastos com Saúde do governo federal no ano passado foram de R$ 215,9 bilhões, e com Educação totalizaram R$ 110,9 bilhões. Ou seja, os investimentos em educação e saúde, somados, representaram 34,40% dos gastos com juros da dívida. Em 2024, a arrecadação federal de impostos totalizou R$ 2,71 trilhões. O resultado representa uma alta real (descontada a inflação) de 9,62% ante 2023, que é recorde na história do Brasil. Desse valor, quase um trilhão foi para o pagamento dos juros da dívida. 

10) Dívida não gera contrapartida em investimentos:

Conforme vem denunciando há anos, a ACD, a dívida não financia qualquer investimento no país. Esse fato foi reconhecido pelo próprio Tribunal de Contas da União (TCU). ​Estudo do TCU, apresentado no Senado Federal em 2019, indicou que, entre 2000 e 2017, a dívida pública brasileira não foi utilizada para financiar investimentos no país. ​O referido estudo resultou no Acórdão nº 1.084/2018 que, inclusive, detalha que, no período referido, a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) aumentou R$ 1,911 trilhão, sendo R$ 3,043 trilhões referentes à apropriação de juros, enquanto as emissões líquidas totalizaram R$ 1,132 trilhão. Os dados comprovaram o que já se conhece há muito tempo: o crescimento permanente da dívida pública em decorrência dos juros escorchantes. Paga-se uma montanha de dinheiro e o principal da dívida só cresce. É um esquema. 

11) Nenhum governo quer enfrentar o problema, porque reconhece que é um verdadeiro vespeiro:

Nem governos de esquerda, e muito menos os de direita, querem pegar o touro pelos chifres e enfrentar o problema da dívida. Regra geral, o horizonte dos governos, no Brasil, quando muito, alcança até a próxima eleição. Em face do problema da dívida, sabendo da força dos rentistas, os governos preferem fazer o que é possível, nas margens do orçamento público consumido pela dívida. 

Não há dúvidas de que, entre o conjunto de grandes problemas que o país terá que enfrentar para se desenvolver, a dívida pública está entre os principais. Contraditoriamente, as mazelas da dívida pública revelam o potencial de desenvolvimento do Brasil. Mas o país não vai conseguir se libertar dos grilhões da dívida com “jeitinhos”, a solução do problema irá requerer muita luta.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!