Polêmica

Como esperar que o operário vote num partido que não o mobiliza?

É justamente aí que o governo Lula tem errado, não convoca a base, faz acordos por cima e se apoia no STF

Neste domingo (27), o Brasil 247 publicou um artigo de Pedro Abramovay intitulado O paradoxo eleitoral da mulher negra. A verdade, no entanto, é que não existe nenhum paradoxo.

Um paradoxo, basicamente, é uma situação, uma afirmação, cuja conclusão é absurda, contraditória e age contra a intuição. É o que o autor propõe no primeiro parágrafo, que diz que “uma cena breve, mas poderosa, do documentário Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, revela um dos dilemas mais profundos da política brasileira contemporânea. Aos 1h19min do filme, disponível na Netflix, vemos uma senhora negra, evangélica, conversando com sua filha. A mãe declara que votará em Jair Bolsonaro por influência da religião, mesmo reconhecendo que Lula tem propostas boas. A filha, jovem demais para votar, diz que preferiria Lula, mas se incomoda com ‘a proposta dele para os banheiros’. Essa troca rápida encapsula o conflito central das eleições de 2022 — e, possivelmente, das de 2026”.

Para Abramovay, uma mulher negra, portanto um dos setores mais oprimidos da sociedade brasileira, teria que, logicamente, votar em Lula, do Partido dos Trabalhadores, em quem reconhece boas propostas; mas, em vez disso, segue o que manda o pastor de sua igreja e declara voto em um indivíduo da direita.

Antes de mais nada, é preciso entender a questão da religião, especialmente para o proletariado. Como escreveu Karl Marx na famosa introdução da Crítica da Filosofia de Hegel:

A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. Exigir que renunciem às ilusões sobre sua condição é exigir que renunciem a uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cujo halo é a religião.”.

A religião cumpre um papel. Se promete um mundo novo, é porque critica este. Se a religião é, como o ópio, uma felicidade ilusória, a contrapartida tem que ser a felicidade real, como diz Marx. Assim, surge a pergunta, Lula e o PT representam essa felicidade?

O texto de Pedro Abramovay desconsidera que para a população não existe a identificação automática entre PT e interesses da classe trabalhadora. E, simultaneamente, Bolsonaro não é visto como um bicho-papão. Para muitos, este representa alguém que está fora, e combate o sistema opressor.

Quando o PT se apoia em uma instituição como Supremo Tribunal Federal, cuja popularidade cai a cada dia, acaba por se identificar como parte do sistema. A base de Lula ainda não digere seu vice, Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo pelo PSDB, que mal apareceu nas estatísticas de votos nas eleições presidenciais de 2018, sendo eliminado ainda no primeiro turno com 4,7% dos votos.

Bolsonaro, por sua vez, ainda que de forma demagógica, promete mudar tudo e tem atritos com a Rede Globo e o STF, o que o faz cair na preferência de boa parte da classe trabalhadora.

Segundo o articulista, “o grupo demográfico que mais votou em Lula foi o de mulheres negras. Já o grupo que mais apoiou Bolsonaro foi o dos evangélicos. E os evangélicos, em sua maioria, são mulheres negras. Esse aparente paradoxo revela uma disputa profunda entre identidades que coexistem, mas que podem ser mobilizadas de formas distintas no momento do voto”. Porém, como o trecho de Marx deixou claro, não existe nenhum paradoxo.

Confusão identitária

Abramovay se confunde ao dizer que muito se debate sobre o chamado ‘voto identitário’. Há quem o critique, como se fosse uma distorção da racionalidade política. Mas essa crítica ignora um fato básico: todos os votos são, em alguma medida, identitários. Votamos como moradores de uma cidade, como trabalhadores de um setor, como pessoas que compartilham valores, histórias e esperanças. O próprio Partido dos Trabalhadores carrega essa mobilização identitária em seu nome. Nos anos 1980, seu slogan era claro: ‘Trabalhador vota em trabalhador’”.

O erro é óbvio porque “trabalhador” é classe social que, como tal, abriga as mais diversas “identidades”. O movimento operário comporta as lutas das mulheres, dos negros, dos índios, dos trabalhadores sem-terra etc.

A política identitária é, por sua vez, liberal e surge dentro das universidades americanas. Ao contrário da classe trabalhadora, que unifica e fortalece cada luta, os identitários dividem e as enfraquece. Dentro do movimento feminista, por exemplo, surgem aquelas que se dizem “feministas negras”. Além de algumas minorias sexuais que afirmam, grosso modo, que mulher não existe, que gênero seria uma construção cultural.

Seguindo em seu raciocínio, Pedro Abramovay sustenta que “no caso das mulheres negras evangélicas, o dilema é: qual identidade será mobilizada? Se a identidade religiosa for dominante — especialmente quando associada a valores morais percebidos como ameaçados — o voto tende ao bolsonarismo”.

O que o articulista não percebe, é que o brasileiro médio, que é conservador, não aceita a questão do compartilhamento de banheiros. Isso tem que ser respeitado. Ao mesmo tempo, muitas mulheres de esquerda se sentem inseguras em ter de compartilhar o banheiro com pessoas que “se identificam” como mulheres. O assunto é pouco debatido porque os identitários costumam ser refratários, autoritários, e “cancelam”, ou acusam de “homofóbicos”, “transfóbicos”, os que a eles se opõem.

Mentalidade eleitoreira

Abramovay diz que se a identidade de mulher negra, trabalhadora, mãe, cuidadora, for ativada por políticas que toquem diretamente sua vida, o voto pode se voltar ao campo progressista., e que “o governo atual precisa entender esse dilema e evitar a armadilha de tentar disputar com os líderes evangélicos suas pautas morais. Em vez disso, deve construir uma narrativa de esperança que dialogue diretamente com essas mulheres”.

O esquerdista pequeno-burguês tem essa mania de “disputa de narrativa”, pois tem dificuldade de entender a classe trabalhadora. “Construir uma narrativa de esperança” nada mais é que um derivado da velha promessa de campanha. O problema é que quase ninguém cai duas vezes no mesmo conto.

Não adianta falar em “políticas de saúde, segurança, educação” quando na economia o governo tem penalizado o pobre, retirado famílias do Bolsa-Família e privilegiado a arrecadação por meio de impostos.

Finalizando seu texto, o articulista diz que “é preciso oferecer uma visão de futuro que convoque todos os que se sentiram traídos pelo bolsonarismo”. Mas é justamente aí que o governo Lula tem errado, não convoca a base, faz acordos por cima e se apoia no STF. Como esperar que, não apenas mulheres negras evangélicas, mas o trabalhador em geral, vote em um partido que só tem se afastado?

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