História

Como a USAID armou a Ditadura Militar no Brasil

O único sentimento que a USAID pode despertar entre os brasileiros é o ódio e um artigo escrito por professor da UFMG demonstra o porquê

Publicado na Revista Brasileira de História, na edição de junho de 2010, o artigo Modernizing repression: Usaid and the Brazilian police (Modernizando a repressão: a USAID e a polícia brasileira, em português), mostra quão fora da realidade estão os esquerdistas que defendem essa sinistra agência, dita de “ajuda humanitária”.

Escrito pelo historiador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Rodrigo Patto Sá Motta, logo no começo, o artigo lembra que a USAID ficou “bastante conhecido no Brasil, especialmente devido ao impacto dos protestos contra a ditadura no final da década de 1960”:

“Naqueles anos, a expressão foi popularizada por grupos que lideravam manifestações de rua contra o governo militar, principalmente liderados por estudantes. Eles protestavam contra os acordos MEC-Usaid, assinados pelo governo brasileiro com o objetivo de usar a assistência dos EUA na reforma do ensino de terceiro grau. Os acordos MEC-Usaid se tornaram o principal símbolo do aumento da presença dos EUA no Brasil após o golpe militar de 1964, fornecendo assim um importante argumento para manifestações anti-imperialistas e antiamericanas.”

Firmado em 1968, o acordo eliminava um ano de estudo na rede básica de ensino, que na época contava com nove anos de ensino primário e três de ensino secundário (o que dava ao ensino básico brasileiro 12 anos de estudo), e também, eliminava matérias como Filosofia e Educação Política, para inserir a famigerada Educação Moral e Cívica, voltada à propaganda ideológica da Ditadura Militar. O artigo de Motta, porém, demonstra que a participação da USAID no mais tenebroso período da história nacional foi muito além da educação:

“No início de 1958, foram feitos novos contatos [após tentativas iniciais fracassadas feitas um ano antes], dessa vez envolvendo o Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), General Amaury Kruel. Em abril de 1958, Kruel visitou os EUA e a Divisão de Segurança Pública da ICA [International Cooperation Administration] para solicitar a doação de equipamentos no valor de US$ 30.000 por meio do programa Ponto IV. Ele fez a habitual profissão de anticomunismo, para mostrar sua comunhão com os objetivos dos americanos, e explicou que o equipamento seria usado para modernizar seu departamento. O objetivo principal era criar um sistema nacional de arquivo e identificação baseado no DFSP, com o objetivo de facilitar a coordenação da repressão ao comunismo no Brasil, embora o serviço também pudesse ser usado para reprimir criminosos comuns. Além disso, ele também queria equipamentos de comunicação e transporte mais sofisticados para tornar o trabalho da polícia mais eficiente.”

Em Washington, informa Motta, os norte-americanos sugeriram que a instalação de material moderno requereria especialistas dos EUA, o que foi negado por Kruel, que alegou só ter interesse nos equipamentos. Oportunistas, os norte-americanos queriam a oferta de recursos técnicos para treinamento e doações de equipamentos fizesse parte de um acordo de cooperação mais amplo, com a inclusão das polícias estaduais.

Em junho do mesmo ano, chega ao Rio de Janeiro um funcionário de alto escalão da USAID ligado à área de segurança: Herbert Hardin. Sua missão no País era convencer Kruel “diplomaticamente”, diz Motta, a aceitar o acordo oferecido pelo imperialismo. Motta esclarece:

“Nos documentos que produziram sobre essas negociações, as autoridades norte-americanas elaboraram uma estratégia para persuadir as autoridades brasileiras. Primeiro, e mais importante, fazer com que o atendimento da demanda por equipamentos dependesse do envio de assessores norte-americanos. Em segundo lugar, organizar visitas aos Estados Unidos e às instalações policiais locais para as autoridades brasileiras que ocupam postos de comando na polícia, em uma tentativa de fazer funcionar o poder de sedução do jeito americano. Enfatizar o aspecto técnico da proposta e eludir as intenções políticas subjacentes a ela, a fim de driblar dificuldades e resistências no governo e na sociedade brasileira, bem como quaisquer campanhas contra ela por parte da esquerda. Iniciar o programa em uma escala modesta no início, ou seja, começar devagar, para consolidá-lo aos poucos e superar barreiras.”

As negociações avançam e, em 1959, o conselheiro policial Joseph Lingo chega ao Rio para novas negociações, tendo ainda a missão de fazer contato com autoridades das polícias dos estados mais importantes e “aceitar algumas das exigências brasileiras de equipamentos, como estratégia para conseguir um acordo mais duradouro ou, na expressão de um funcionário da Usaid, para ‘colocar um pé na porta’”. Motta acrescenta uma divergência entre Lingo e Kruel curiosa à luz do apoio de setores da esquerda à USAID. Enquanto o norte-americano queria a máxima publicidade com o acordo, “Kruel parecia estar preocupado com as repercussões políticas e as críticas dos nacionalistas e da esquerda, e preferia um acordo mais discreto”, diz Motta.

“As autoridades policiais queriam receber equipamentos de comunicação (rádios, centros de comunicação), automóveis equipados com rádios, tecnologia para montar laboratórios de investigação, centros de processamento de informações e utensílios auxiliares, como granadas de gás lacrimogêneo, cassetetes e algemas. Armas também eram bem-vindas, mas a Usaid preferiu evitar se envolver diretamente com armas por meio de canais legais e sugeriu aos brasileiros responsáveis que importassem os equipamentos por outros meios. Inicialmente, algumas autoridades brasileiras hesitaram em aceitar a presença de especialistas norte-americanos, mas essa era uma exigência do governo dos Estados Unidos, que queria seus conselheiros na área para monitorar a situação e obter informações – e também para fornecer à CIA (Central Intelligence Agency, a sinistra agência central do serviço secreto norte-americano) a oportunidade de recrutar colaboradores valiosos. Após dois anos de negociações e conversas, chegou-se a um acordo em que se pode dizer que ambos os lados fizeram concessões: As autoridades brasileiras concordaram com a ideia de cooperação técnica e treinamento, além de consultores, enquanto as autoridades norte-americanas concordaram em aumentar a quantidade de equipamentos a serem enviados. Nos orçamentos preparados pela ICA-Usaid para os anos iniciais, entre 1960 e 1964, os fundos alocados para commodities correspondiam a aproximadamente 50% dos recursos.”

Finalmente, em 1960, começa o programa com seis policiais escolhidos para receber treinamento nos EUA, entre eles, “alguém que se tornaria famoso”, diz Motta: Daniel Mitrione “ou simplesmente Dan Mitrione”. Mitrione se converterá em instrutor dos EUA para a repressão na América do Sul. Em agosto de 1970, o grupo uruguaio Tupamaros sequestra e executa Mitrione após não conseguir trocá-lo por prisioneiros políticos uruguaios.

Entre 1962 e 1964, no Panamá, a Usaid cria a Academia Interamericana de Polícia (Iapa, na sigla em inglês). O Secretário de Estado Dean Rusk resumiu os objetivos da instituição: “aumentar a capacidade da polícia latino-americana de manter a ordem e a estabilidade, uma condição necessária para permitir o desenvolvimento social, econômico e político da região”. Motta explica ainda:

“No final de 1963, a Usaid decidiu criar uma nova instituição de treinamento, desta vez em solo americano e com um perfil diferente do Iapa. A nova escola, denominada International Police Academy (IPA), foi projetada para oferecer cursos para policiais de alto escalão, em resposta às críticas de alguns majores e coronéis latino-americanos sobre o nível dos cursos panamenhos, que, na opinião deles, eram muito elementares. O IPA dava mais ênfase a assuntos relacionados à contra-insurgência e ao controle de distúrbios, ou seja, tinha um formato político-repressivo mais forte, e as aulas eram em inglês. Outra novidade foi a presença de alunos de outras partes do mundo, embora a preocupação marcante com a América Latina tenha permanecido. Significativamente, a ênfase no treinamento de oficiais de alta patente para o trabalho de segurança interna e opressão foi omitida no material publicitário divulgado pela Usaid, que preferiu destacar a preocupação em oferecer um treinamento voltado para a ‘manutenção da ordem pública com o uso mínimo da força’. De fato, em toda a publicidade oficial sobre os cursos de polícia há sempre uma tendência a omitir a ênfase no treinamento para a contra-subversão, enquanto, ao contrário, nas discussões internas o tema é destacado e é o objetivo mais importante dos programas.”

Em abril de 1964, exatamente no período do golpe que iniciou a Ditadura Militar, a Iapa foi desativada, na avaliação de Motta, em decorrência dos violentos protestos nacionalistas. Os cursos são transferidos para a capital norte-americana, que abriga a IPA. “A presença de brasileiros nos cursos ministrados no Panamá e nos Estados Unidos foi significativa e seria ampliada nos anos seguintes como resultado das mudanças políticas no país após 1964”, diz Motta.

“Uma vez removidas as forças hostis à presença dos EUA e com a ascensão de um dos governos mais pró-americanos da história brasileira (o governo Castelo Branco), o programa policial da Usaid experimentou uma notável expansão. Aproveitando o clima político favorável, o embaixador Gordon não só deu sua aprovação, como também incentivou a Usaid a assinar acordos com estados até então relutantes, como Pernambuco, cujo novo governador solicitou a inclusão (na verdade, o retorno) de seu estado ao programa. No momento do auge do projeto, em 1967, havia 23 conselheiros policiais americanos no Brasil, operando em 15 estados e no Distrito Federal.”

Motta destaca que a Polícia Federal será reorganizada já em colaboração com o USAID, responsável pela criação de órgãos como Academia Nacional de Polícia, Instituto Nacional de Identificação, Instituto Nacional de Criminalística e Centro de Treinamento em Comunicações. “Quando as acusações de tortura criaram problemas políticos para os EUA”, destaca Motta, “eles começaram, como veremos, a enfatizar que a Polícia Federal não estava envolvida nas acusações, como se não tivessem fornecido treinamento também para as polícias estaduais”.

Finalmente, toda a estrutura de repressão para fazer valer o regime de terror da Ditadura Militar estava criada, com a contribuição fundamental, embora pouco conhecida, da USAID. Longe de ser uma agência de “ajuda humanitária”, a USAID foi, na prática, uma peça-chave na organização do terror imperialista contra o povo brasileiro.

Seu papel foi além do mero apoio logístico ou técnico: a USAID esteve diretamente envolvida no planejamento, financiamento e execução de programas que visavam aterrorizar o povo e dissuadir qualquer tipo de resistência à ditadura pelo medo. Treinou torturadores, forneceu equipamentos para vigilância e perseguição, criou centros de formação e, mais do que isso, moldou o padrão de repressão ainda hoje vigente na sanguinária polícia brasileira.

A realidade exposta pelos documentos e pesquisas como a de Motta escancara o caráter criminoso dessa agência. A USAID foi coautora dos crimes da Ditadura Militar. O Brasil pagou caro por essa “cooperação técnica”, com vidas perdidas, liberdades destruídas e uma herança de barbárie que perdura até hoje.

O único sentimento legítimo que essa organização pode despertar entre os brasileiros é o mais profundo repúdio e ódio. Encará-la de outra forma é aceitar a subordinação do País aos interesses de mafiosos que nunca hesitaram em usar a tortura e o assassinato como ferramentas de controle.

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.