Maria Rita Kehl

Psicanalista, jornalista, ensaísta, poetisa, cronista e crítica literária brasileira

Coluna

Comissão da Verdade e repressão contra indígenas

Durante a ditadura militar, milhares de indígenas foram mortos por doenças evitáveis após o contato forçado promovido pelo Estado

Minha pesquisa para a Comissão da Verdade foi sobre as graves violações de direitos humanos contra camponeses e populações indígenas. Em geral, as pessoas compreendiam a causa camponesa, não apenas porque já tinham ouvido falar das Ligas Camponesas, mas porque os camponeses estão culturalmente mais próximos de nós, urbanos, do que os índios. Quanto a esses, ouvi diversas vezes a pergunta: “Mas os índios lutaram contra a ditadura?”

Ao que eu respondia que, não, eles nem sabiam que viviam num país chamado Brasil: viviam em suas terras, à época da ditadura (1964 a 1985), bastante isoladas do resto do Brasil. Eles não lutaram contra a ditadura, mas foi a população que sofreu o maior número de mortes no período. Não morreram na guerrilha, enfrentando o Exército, como os militantes urbanos. Morreram de “doenças de branco”: gripe, sarampo, catapora, varíola…

Entrevistei um sertanista cujo nome não me lembro, que se demitiu da função – um emprego público bem remunerado – alegando: “Não quero ser coveiro de índios”. Sim, porque o governo militar enviava sertanistas para fazer contato com os indígenas, com a finalidade de expulsá-los de suas terras e abrir espaço para as grandes obras de “integração da Amazônia”.

Além do caráter criminoso de expulsar povos originários de suas terras ancestrais, os que integraram as “frentes de aproximação”, destinadas a expulsar os indígenas em favor do “progresso”, não eram vacinados nem levavam vacinas para prevenir que os índios se contaminassem com doenças “de branco”, para as quais não tinham desenvolvido resistência.

Calculamos um número aproximado de oito mil indígenas mortos por doenças banais como sarampo, catapora e gripe, por responsabilidade do governo ditatorial, que não tomava providências para protegê-los.

Entre várias etnias que visitei – Pataxós, Waimiri-Atroari, Guaranis etc. – fui conhecer uma aldeia Yanomami, para investigar as violações sofridas pelos indígenas desde o início da abertura da Perimetral Norte, em 1974. Ao final do testemunho de quatro anciãos, o líder Davi Kopenawa, um dos mais influentes pajés de sua aldeia, concedeu à Comissão da Verdade o depoimento que se segue:

“Eu não sabia que existia governo. Veio chegando de longe até nossa terra: são pensamentos diferentes de nós. Pensamentos de tirar mercadoria da terra: ouro, diamantes, cassiterita, madeira, pedras preciosas. Matam árvores, destroem a terra-mãe, como o povo indígena fala. Ela é que cuida de nós. Ela nasceu, a natureza grande, para a gente usar. Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. Não só os Yanomami: o povo do Brasil. A estrada é um caminho de invasores, de garimpo, de agricultores, de pescadores. Tiram “biopirataria” sem avisar nós. Estradas que o governo construiu começaram lá em Belém, depois Amapá, Manaus, Boa Vista. Mataram nossos parentes Waimiri-Atroari. É trabalho ilegal. O branco usa palavra ilegal.

A FUNAI, que era pra nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez. O governo local e nacional, deputados, senadores, governadores, todos têm que pensar como o governo vai nos proteger e não deixar mais destruir matas e rios e fazer sofrer os Yanomami e outros parentes, junto com a floresta. O meio ambiente sofre também, junto com o índio.

Minha ideia: eu ando no meu país, o Brasil. Sou filho da Amazônia brasileira, conto para quem não sabe o sofrimento do meu povo. Não queremos que a autoridade deixe estragar outra vez. Se o governo quer fazer estrada na terra Yanomami, tem que entrar e conversar com nós, junto com o Ibama. O governo Dilma está aprontando para estragar outra vez. Nosso povo não quer. A autoridade tem que respeitar a Constituinte que o governo passado criou. O que fala a OIT, no papel, não pode mudar, não. Tem que ser respeitado.

Querem mudar o artigo 231. A Proposta 227 vai permitir matar nós, não vai mais deixar demarcar terras de nossos parentes. O governo tem que completar o trabalho e demarcar as terras dos povos que ainda estão lutando. Demarcar as terras de quem ainda falta demarcar. Hoje em dia nós, lideranças, sabemos reclamar! Também precisa falar com outros governos do mundo que mandam estrangeiros virem destruir a natureza de nosso país. Não queremos aprovação de projetos de mineração no Congresso. Vamos passar fome quando não tiver mais árvores, peixes, água limpa. Belo Monte é morte. Não é uma palavra bonita, é palavra morte. Vai matar árvores, rios, índios, vida da terra.

Os brancos pensam que a floresta foi posta em cima do chão sem nenhum motivo. Pensam que a floresta é uma coisa morta. Isso não é verdade. Ela só fica lá, quieta no chão, porque os espíritos dos xapiripë tomam conta dos seres maléficos e seguram a raiva dos seres da tempestade. Sem a floresta, não teria água na terra. As árvores da floresta são boas porque estão vivas, só morrem quando são cortadas. Mas daí elas nascem de novo. É assim. Nossa floresta é viva, e se os brancos acabarem com nosso povo e com as matas, eles não vão saber orar em nosso lugar, vão ficar pobres e acabar sofrendo de fome e sede (…). Queremos que nossos filhos e netos possam crescer achando nela seus alimentos. Nossos antepassados foram cuidadosos com ela, por isso está até hoje com boa saúde.
Foi o governo que tirou nossa floresta, nossos rios e a vida dos irmãos. Tem que pagar indenização. Porque nossa vida vale mais do que ouro.”

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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