Ironicamente, há cerca de três anos, estávamos em uma roda de militantes — e Natália estava conosco — discutindo sobre o capitalismo. Naquele momento, ela trouxe à tona o caso de uma doença degenerativa infantil, a Atrofia Muscular Espinhal (AME). Tinha acabado de ser lançada uma medicação capaz de curar ou melhorar de forma impressionante a qualidade de vida de uma criança com essa doença. No entanto, essa medicação de dose única custava — e segue custando — milhões (hoje, cerca de 7 milhões).
Debatemos o absurdo do valor cobrado: um preço acessível apenas ao 1% mais rico — e quando digo “rico”, refiro-me aos verdadeiramente ricos, não às pessoas com bons salários que se iludem achando que fazem parte dessa classe, mas que, se perderem o emprego, têm seu padrão de vida imediatamente ameaçado. Rico não trabalha; rico tem quem trabalhe por ele; rico vive de renda; rico nem sabe o que é trabalhar; deixe de ser otário.
O motivo desse preço é o capitalismo. Afinal, imagine quanto dinheiro a indústria farmacêutica deixa de ganhar quando existe a cura para uma doença.
“A expectativa de vida de uma criança com Atrofia Muscular Espinhal (AME) depende do tipo da doença. Na AME tipo 1 (a forma mais grave), a expectativa de vida é geralmente menor que 2 anos sem suporte respiratório. Para os tipos 2 e 3, a expectativa de vida varia, podendo ser normal ou próxima do normal, dependendo da gravidade dos sintomas.” (informações de consulta google).
Diante desses dados, quanto uma família gastaria durante 2, 20, 30, 50, 60 anos cuidando de uma pessoa com essa doença?
O capitalismo é um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção (como fábricas e terras) e na busca incessante pelo lucro. Para esse sistema, a vida das pessoas não importa.
Essa definição, por si só, já evidencia o quanto o capitalismo é perverso — e, portanto, totalmente incompatível com o SUS.
Vamos recordar, de maneira sucinta, o que é o SUS.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é o sistema público de saúde brasileiro que garante acesso universal, integral e gratuito aos serviços de saúde para toda a população. É amplamente reconhecido internacionalmente por sua amplitude: cobertura universal, atenção primária com equipes multiprofissionais, campanhas massivas de vacinação e políticas consolidadas de saúde pública.
A Lei nº 8.080/1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, regulamenta o SUS e estabelece as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, além de definir princípios fundamentais como universalidade, integralidade e igualdade.
O Brasil é, de fato, o único país com mais de 200 milhões de habitantes que possui um sistema público de saúde universal.
O SUS tem inspirado sistemas de outros países, especialmente no modelo de atenção básica e de agentes comunitários de saúde.
Pesquisadores britânicos do NHS (National Health Service) trabalham em parceria com a Fiocruz para replicar o modelo brasileiro de agentes comunitários com foco em atenção primária e prevenção à saúde na Inglaterra.
Outras nações se inspiraram em programas específicos, como o bem-sucedido programa brasileiro de combate ao HIV/AIDS, que garantiu acesso universal a antirretrovirais e se tornou referência mundial.
É importante lembrar que o modelo que inspirou a criação do SUS foi o próprio NHS britânico, criado em 1948 — que era um modelo muito bom, público, aclamado pelos britânicos, hoje, pela força da política neoliberal enfrenta uma crise profunda, marcada por subfinanciamento crônico, longas listas de espera, escassez de profissionais e greves recorrentes.
O que aconteceu com a camarada Natália Pimenta?
Natália teve um câncer de mama e o superou. Posteriormente, desenvolveu um câncer na cabeça, passou por uma cirurgia bem-sucedida e continuou o tratamento. Esse tratamento, porém, levou ao desenvolvimento de uma leucemia rara. Todos sabem o quão devastadores são os tratamentos contra o câncer — medicações que destroem tanto células doentes quanto sadias. Pessoalmente, não acredito que não exista cura para o câncer (e o motivo dessa descrença já deixei claro acima). Também questiono se, diante de todo o desenvolvimento científico existente, os tratamentos precisam ser tão agressivos.
Em outubro, após todas as tentativas e depois de Natália ter superado as expectativas de vida dadas pelos médicos, descobriu-se a existência de uma medicação para seu tipo de leucemia rara, medicação já aprovada pela Food and Drug Administration (FDA), a agência do governo dos EUA responsável por proteger a saúde pública ao garantir a segurança, eficácia e proteção de medicamentos, produtos biológicos, dispositivos médicos e alimentos. A agência também regula a segurança de cosméticos, produtos que emitem radiação e tabaco. Natália e sua família conversaram com o médico, que prescreveu o medicamento e solicitou urgência, pois a vida dela dependia disso.
Por ser uma medicação ainda não disponibilizada no Brasil e muito cara, foi acionada a justiça brasileira para autorizar sua aquisição pelo serviço público de saúde brasileira, o SUS. A partir daí começou a protelação. A juíza Anita Villani exigiu provas adicionais de eficácia, mesmo após terem sido apresentados documentos, incluindo a aprovação pela FDA. O processo já tinha mais de 100 páginas. Em cerca de 20 minutos, a mesma juíza negou o pedido que poderia salvar a vida da camarada Natália… 20 minutos para ler e analisar um processo de mais de 100 páginas.
Após intensa repercussão e mobilização do PCO, a medicação foi autorizada por um desembargador, que reconheceu a urgência. Mesmo com o “cumpra-se”, com o esforço de parlamentares, da ministra Gleisi Hoffmann e da Presidência, a medicação não chegou.
Ironicamente, duas horas após a morte de Natália, seu irmão, João Pimenta, recebeu uma ligação do Ministério da Saúde informando que o medicamento seria adquirido em um futuro breve. Antes disso, outra bizarrice aconteceu, a família foi avisada de que a medicação iria ser incluída em um processo de licitação. Como se faz uma licitação em que uma medicação só é produzida por uma empresa?
Durante esse período de espera, Natália que havia superado as expectativas de seus médicos, teve sua saúde que já era muito frágil, se deteriorando cada vez mais, entubada, inconsciente, sofrendo com infecções, Natália morreu dia 22 de novembro de 2025 com 40 anos.
Eu só penso na minha filha, na minha neta, e nos dois filhos da Natália.
O Ministério da Saúde precisa investigar urgentemente por que a Lei 8.080/1990 não está sendo cumprida; investigar por que um setor especializado quer fazer licitação de medicação produzida por apenas uma empresa; eu quero saber o que o ministro tem a dizer sobre isso. E não venham com desculpas sobre falta de recursos. Sabemos que uma parte gigante de nossos impostos é usada para pagar a dívida eterna com os bancos e que enquanto a família de Natália lutava pela medicação, dinheiro público era usado para indenizar o agronegócio sob a justificativa de prejuízos causados pela taxação norte-americana. Balela. Essa gente já é rica demais.
A saúde tem sido sucateada há anos com um único objetivo: a política neoliberal pretende retirar dos cidadãos o direito à saúde integral. A imprensa — instrumento poderoso a serviço dessa política — difunde a ideia de que o SUS “não presta”.
Quem não presta são os seres humanos que exploram a população e querem que ela morra sem acesso aos cuidados necessários, há uma vida digna.
Outra situação alarmante é o número crescente de negativas judiciais para medicações de alto custo. É absurdo que a população precise recorrer à Justiça para garantir tratamento que são previstos pela Lei 8.080/1990, que estabelece a universalidade, a integralidade da assistência e a igualdade de direitos.
Natália Pimenta é mártir dessa política neoliberal que destrói a saúde do povo brasileiro.




