A situação calamitosa da saúde no Brasil vai para além do sucateamento dos serviços, a fim de levar adiante a política econômica neoliberal de privatização de hospitais, Unidades Básicas de Saúde, CAPS etc., etc.
O problema da saúde engloba também a formação dos profissionais da área, como os citados na matéria sobre o menino Benício, de 6 anos, que entrou andando no Pronto-Socorro (PS) com uma laringite e saiu morto devido a um erro médico crasso. Uma médica prescreveu três aplicações de adrenalina na veia da criança, apesar de a mãe questionar a técnica de enfermagem sobre ser uma injeção e não uma inalação, e a mesma responder que nunca tinha visto tal procedimento, mas que estava na prescrição médica, então fez. Temos ainda os farmacêuticos, que também têm plenas condições de identificar a prescrição errada e poderiam ter avisado a médica, mas não o fizeram. Foram pelo menos três erros, eram três chances de o menino Benício estar vivo.
Mas o que acontece? Além das formações ruins que temos, há cursos privados a partir de R$ 129,90/mês… quem confia em uma formação semipresencial ou EAD com esses valores? Quem são os professores? Compreendo que pessoas sem recursos financeiros acabam fazendo essa opção, até porque não têm condições de passar em um vestibular de universidade pública, pois, como sabemos, o ensino está há muito tempo péssimo. Os adolescentes saem do colégio analfabetos funcionais, isto é, a pessoa reconhece letras e números, mas não consegue interpretar as informações dos textos e utilizá-las no dia a dia. Pessoas funcionalmente analfabetas têm seu desenvolvimento pessoal, profissional e social afetados, e afetados para baixo, quem questiona o que não compreende?
O outro problema é o famoso “ato médico”. O ato médico é inquestionável: vá você perguntar para o médico sobre o tratamento que ele está lhe prescrevendo. Contarei uma experiência pessoal. Em uma época da minha vida, já bem adulta, comecei a ter infecções de garganta recorrentes. Eu passava no PS e sempre prescreviam amoxicilina; o quadro melhorava e, após o término da medicação, a infecção voltava. Depois de alguns episódios desses, novamente no PS, uma médica disposta a ouvir, quando eu disse que a infecção era recorrente e expliquei o que vinha acontecendo, me disse: “Você é resistente à penicilina e seus derivados; vou te passar outro antibiótico, e, quando tiver problemas de saúde que precisem de antibiótico, avise o médico”. A infecção foi curada e, anos depois, quando tive outra infecção de garganta, avisei à médica da minha resistência à penicilina e seus derivados. A mulher ficou muito irritada, respondeu rispidamente que havia me prescrito amoxicilina com clavulanato para aumentar o combate à bactéria… resultado: depois de alguns dias, voltei ao PS e me prescreveram outro antibiótico.
Existe uma classe social do ato médico que ninguém pode questionar. Onde trabalho, um médico acusou a enfermagem de não supervisionar a tomada de medicação, ou mesmo de não medicarem os pacientes, devido à não melhora do quadro, isso porque nunca, nunquinha na vida, poderia ser uma medicação equivocada por parte do Sr. médico.
Dados:
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou que, em 2024, houve um aumento de processos por erros médicos de 506% comparados com 2023. Em 2023 foram 12.268 e, em 2024, foram 74.358. Esse dado sinceramente não me espanta, mas um outro dado é muito curioso: são os dados que mostram a disparidade de erros médicos entre a saúde pública e a saúde privada. Vamos lá: “No sistema público de saúde, as ações por danos morais somaram 10.881 registros, enquanto as relacionadas a prejuízos financeiros (danos materiais) totalizaram 5.854. Já na rede privada, os números são quase três vezes maiores: 40.851 processos por danos morais e 16.772 por danos materiais. A média diária de 203 casos judicializados em 2024 evidencia uma crise que se arrasta há anos, mas ganhou novos contornos com a maior conscientização da população sobre os direitos do paciente”.
É incrível que, apesar de todo o sucateamento da saúde a fim de privatizar os serviços, o Sistema Único de Saúde (SUS) continue sendo melhor que a saúde privada. Apesar de esses dados serem públicos, vemos a população concordando com a imprensa capitalista de que o SUS é ruim e deve ser privatizado, ao invés de lutarem pelo fortalecimento do SUS — mas isso tem a ver com o terceiro parágrafo.
Outro problema importante da saúde é a elitização dos cursos de medicina — não só, mas esse é o nosso foco aqui. A medicina sempre foi considerada um curso para a elite, e assim querem que continue, pois é uma forma de manter altos salários. Já conversei com pai de médico reclamando que o filho só recebia 16 mil reais, e obviamente não era por 40 horas semanais. Essa situação acaba levando jovens que nem gostam de medicina, de cuidar de gente, a fazer o curso, seja porque os pais são médicos e a tradição familiar tem que continuar, seja porque é uma profissão rentável. Por outro lado, pessoas que realmente têm o desejo de ser médico, vocação para ser médico, vontade de praticar a medicina para cuidar de pessoas e salvar vidas, ficam impedidas devido a toda essa política mercantilista da profissão.
Quem já teve a oportunidade de ser tratado por médicos cubanos — ou, caso não tenha tido essa oportunidade, pode ver em entrevistas e documentários — percebe a diferença de tratamento dos médicos cubanos para com as pessoas que tratam: são educados, acolhedores e interessados. Foram eles que foram para os locais mais afastados, os estados mais distantes de São Paulo, para as periferias. Os médicos brasileiros que tanto reclamaram dos médicos cubanos: quantos deles foram para esses locais depois que tiraram os cubanos? Pelo contrário, já conheci muitos médicos que vieram do Norte e Nordeste do país para fazer algum tipo de especialização (porque todo mundo quer ser especialista) aqui em São Paulo e não voltam, porque pouco se preocupam com o povo.
Qual a diferença de Cuba? A universidade é aberta, é pública e é boa. Vocês sabiam que muitos americanos vão para Cuba se tratar porque, além de a medicina ser boa, eles não têm dinheiro para pagar seu tratamento nos EUA?
Esse é o caminho: a universidade aberta, pública e boa. Vamos ter muitos médicos, gente interessada, com vocação e amor por tratar pessoas. Ninguém teria medo de questionar um médico, mesmo vendo que a coisa está errada, estranha, e o Benício e tantas outras pessoas estariam vivas e bem, sendo tratadas adequadamente.





