Nesta terça-feira (15), a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras sete pessoas no âmbito do processo da suposta tentativa de golpe de Estado, que teria culminado nas manifestações bolsonaristas de 8 de janeiro de 2023.
Bolsonaro foi denunciado “pelos crimes de liderar organização criminosa armada (art. 2º, caput, §§2º, 3º e 4º, II, da Lei n. 12.850/2013), tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP), golpe de Estado (art. 359-M do CP), dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima (art. 163, parágrafo único, I, III e IV, do CP), e deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, da Lei n. 9.605/1998)”, conforme consta da denúncia da PGR.
A procuradoria, que é o órgão máximo do Ministério Público Federal (MPF), qualificou Bolsonaro como sendo “líder da organização criminosa [..], por ser o principal articulador, maior beneficiário e autor dos mais graves atos executórios voltados à ruptura do Estado Democrático de Direito”, e que “o ex-presidente teria o cargo com a finalidade de prejudicar a alternância legítima de poder nas eleições de 2022 e minar o livre exercício dos demais poderes constitucionais, especialmente do Poder Judiciário”.
A denúncia da PGR contra os réus tem 517 páginas. Desse total, 137 são dedicadas às acusações contra Jair Bolsonaro. Elas vão do fim da página 65 até a metade da 202.
Na peça, a tese fundamental da PGR para acusar Bolsonaro de tentativa de golpe e demais crimes é que as críticas (ataques, segundo a PGR) do ex-presidente às urnas eletrônicas, ao processo eleitoral brasileiro, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e seus respectivos ministros teriam sido feitas para fomentar uma insurreição golpista.
A PGR afirma que o marco inicial disto teria sido a transmissão feita por Bolsonaro em 29 de julho de 2021, e depois teriam sido intensificadas e aumentadas ao longo do tempo, até chegar a uma suposta insurreição, que teria sido o ponto culminante da suposta tentativa de golpe. Isto pode ser lido em vários trechos da denúncia:
“A propagação coordenada de ataques ao sistema eletrônico de votação. Foi fixada, por escrito, a diretriz de repetição contínua da narrativa de vulnerabilidade das urnas eletrônicas, como forma de deflagrar movimentos de rebeldia contra os resultados desfavoráveis ao grupo”.
“O marco simbólico desse processo foi a live transmitida em 29.7.2021, quando JAIR BOLSONARO, diretamente do Palácio do Planalto, apresentou uma série de alegações falaciosas sobre o sistema eleitoral, em manobra que se mostrou voltada a direcionar a opinião pública para a hipótese de insurreição”.
“Ao atacar as urnas eletrônicas, defender o retorno do voto impresso, questionar a lisura de Ministros do Supremo Tribunal Federal, sugerir manipulações na contagem de votos, exaltar a mobilização popular como suposto freio ao Judiciário e insinuar o papel das Forças Armadas como garantidoras da ordem, o então Presidente costurava, com cálculo e método, narrativa legitimadora da insurreição” [grifo nosso]
Ocorre que a tal insurreição foi a manifestação bolsonarista do 8 de janeiro de 2023, em Brasília. A manifestação ocorreu apenas na Praça dos Três Poderes, os manifestantes, em sua grande maioria, eram pessoas comuns da população, nenhum estava armado com arma de fogo, e o exército não participou. Isto é, a tal insurreição nunca ocorreu. O que mostra que a denúncia é uma farsa.
Essa farsa se confirma em vários trechos do documento, em que fica claro que as Forças Armadas Brasileiras não estavam unidas para realizar um golpe de Estado, seja colocando tanques nas ruas, seja garantindo nos bastidores um possível golpe. Eis alguns trechos que mostram que o Alto Comando das Forças Armadas não estava embarcando em uma tentativa de golpe:
“Os denunciados continuaram especulando sobre possíveis mudanças no posicionamento do Alto Comando do Exército que poderiam justificar a assinatura do Decreto e a estruturação do Gabinete de Crise […] A resposta de CAVALIERE, citando MAURO CID como fonte, demonstrou um breve desânimo, mas ainda refletia a esperança do grupo, com ele dizendo: “não vai rolar nada”, mas também reafirmando a disposição da Marinha em apoiar o golpe. Segundo ele, seria necessário o apoio das outras Forças para garantir a vitória, pois a Marinha ‘não aguenta a porrada que vai tomar sozinha’”.
“Em seguida, CAVALIERE fez ataques ao Alto Comando do Exército, acusando os líderes militares de agirem por interesses pessoais em detrimento do povo, e explicou a relutância do então Presidente JAIR BOLSONARO em assinar o decreto: “O presidente não vai embarcar sozinho porque pode acontecer o mesmo que no Peru. Ele está com decreto pronto, ele assina e aí ninguém vai, ele vai preso. Então não vai arriscar…”
“Baptista Júnior foi mais incisivo em seu depoimento, confirmando que Freire Gomes alertou, até mesmo, para a possibilidade de prisão de JAIR BOLSONARO: ‘Falou com muita tranquilidade, com muita calma, mas colocou exatamente isso: se o senhor tiver de fazer isso, eu vou [ininteligível] prender. Foi algo nesse sentido. Eu vi a discordância entre o que ele falou e o que eu estou falando’”.
Como pode ser visto acima, mesmo que Bolsonaro tivesse cogitado um golpe de Estado, ele não queria assinar um decreto para esse fim sem o apoio das Forças Armadas.
Um golpe de Estado não pode prosperar se as Forças Armadas estiverem contra. Elas precisam apoiá-lo, seja de forma aberta (tanques na rua), seja nos bastidores (garantindo que ocorra). Mas, na própria denúncia, o Alto Comando não estava apoiando.
Isto torna o suposto crime de golpe de Estado um crime impossível. Assim, mostra-se uma farsa a PGR ter denunciado Bolsonaro por “tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, quanto mais por “golpe de Estado”. Afinal, se o crime é impossível, não tem como se configurar a tentativa. O crime impossível é definido no artigo 17 do Código Penal brasileiro e se configura quando a consumação do crime é impossível devido à ineficácia absoluta do meio utilizado ou à impropriedade absoluta do objeto, tornando até mesmo a tentativa impunível:
“Art. 17 – Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”
Quanto aos outros crimes pelos quais a PGR denuncia Jair Bolsonaro, dano a patrimônio e deterioração de patrimônio tombado, a situação é igualmente absurda.
Afinal, esses danos e essa deterioração ocorreram durante as manifestações do 8 de janeiro, e foram cometidas por uma minoria de pessoas que estavam lá. E Bolsonaro não estava lá e, na denúncia da PGR, não consta nenhuma ordem de Bolsonaro para danificar e deteriorar esses patrimônios.
É um absurdo, pois uma das regras básicas de um Estado de Direito (que os acusadores dizem defender) é que a responsabilidade criminal é estritamente pessoal, ou seja, Bolsonaro não pode ser condenado (nem mesmo denunciado) pela destruição de patrimônio que ele não provocou e nem ordenou. Essa é uma regra que está no art. 5º, XLV da Constituição Federal de 1988:
“XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;”
A PGR acusa Bolsonaro desses crimes utilizando de uma versão piorada do domínio do fato: ela presume a liderança de Bolsonaro simplesmente porque a manifestação foi realizada por bolsonaristas.
Denúncia contra Bolsonaro aprofunda ditadura
No decorrer das 137 páginas dedicadas a justificar a denúncia contra Jair Bolsonaro, o principal pretexto para acusar Bolsonaro de golpe de Estado e demais crimes é a crítica do ex-presidente à “vulnerabilidade das urnas” e ao sistema eleitoral brasileiro em geral, sua defesa do voto impresso e suas críticas às instituições.
Isto é, no fim das contas, ele é acusado de golpe de Estado por causa dessas posições políticas e por ter agido para difundir elas. Em trechos da denúncia que demonstram isso, a PGR diz que “a estratégia golpista articulada por JAIR MESSIAS BOLSONARO alcançou novo patamar de radicalização nos discursos públicos proferidos em 7.9.2021, tanto na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, quanto na Avenida Paulista, em São Paulo”.
“Em relação ao art. 359-L do Código Penal, há registros igualmente incontroversos sobre a incansável atuação da organização criminosa para minar o livre exercício dos poderes constitucionais e incitar a violência contra as suas estruturas […] pronunciamentos realizados em 7.9.2021, na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista 38 , nos quais JAIR MESSIAS BOLSONARO incitou publicamente a animosidade contra o Poder Judiciário e os seus integrantes”.
Ou seja, segundo a PGR, não é permitido incitar animosidade. Bem, se não pode incitar animosidade contra autoridades, não se pode protestar contra o regime vigente, por pior que ele seja, por mais mais que ele esmague a população, por mais miserável que seja a vida do povo em razão dess regime.
Ora, em toda e qualquer manifestação, incita-se animosidade a aquilo contra o qual se protesta. Se incitar a animosidade contra autoridades serve para qualificar o crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L), então acabou o direito de manifestação (e de liberdade de expressão), e o que existe é uma ditadura.
Mostrando que a denúncia contra Bolsonaro também é um ataque ao direito de manifestação (art. 5º, IV e XVI da CF/88), a PGR qualifica como “dizeres antidemocráticos” palavras como “liberdade sim, censura não”, “respeito à constituição”, “não à ditadura do judiciário”, e outros dizeres que foram vistos nos acampamentos montados em frente aos quarteis:
“A dupla igualmente compartilhou o documento de título ‘faixas’, contendo diversas frases em retângulos, como ‘LIBERDADE SIM, CENSURA NÃO’, ‘RESPEITO A CONSTITUIÇÃO, CONTAGEM PÚBLICA DOS VOTOS’, ‘SOS FORÇAS ARMADAS’, ‘NÃO A DITADURA DO JUDICIÁRIO’, ‘NOVAS ELEIÇÕES PARA PRESIDENTE’. Eram exatamente esses os dizeres antidemocráticos estampados em faixas e cartazes nos acampamentos montados pelos apoiadores de JAIR MESSIAS BOLSONARO, o que denota, mais uma vez, o suporte material fornecido pela organização às manifestações ilícitas”
Em outro momento da denúncia, ao comentar sobre a transmissão que Bolsonaro fez em julho de 2021, em que criticou o sistema eleitoral brasileiro, a PGR deixa implícito que ela é contra a possibilidade de apresentar novamente uma proposta no Congresso Nacional, se ela já tiver sido rejeitada anteriormente:
“A própria ambientação do vídeo revelou o seu caráter propagandístico e performático: duas telas ao fundo exibiam a imagem de um boneco com camiseta amarela segurando um cartaz onde se lia ‘VOTO IMPRESSO AUDITÁVEL’. O enquadramento simbólico reforçava a mensagem central da transmissão, que foi conduzida de forma a transformar uma pauta rejeitada pelo Congresso e refutada pelas evidências técnicas em palavra de ordem de um movimento político de contornos sediciosos”.
Ora, uma “pauta” rejeitada pelo Congresso pode sempre voltar a ser “pautada”. A rejeição não é eterna. Além disso, é absurdo dizer que pedir voto impresso auditável seria palavra de ordem de movimento sedicioso. Afinal, um voto que pode ser auditado por qualquer cidadão é mais democrático que um voto que não pode ser auditado por qualquer cidadão.
Provas contra Bolsonaro são alegações de delator e de terceiros
No que diz respeito às provas das alegações que a PGR faz contra Jair Bolsonaro, elas se limitam a alegações de terceiros, especialmente de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Isto fica bem evidente quando a PGR se refere a uma suposta carta de Bolsonaro para pressionar o Alto Comando do Exército a aderir a uma tentativa de Golpe. A PGR cita uma pessoa que cita Mauro Cid, que depois confirma a suposta existência da carta:
“Em 26.11.2022, assim que tomou conhecimento sobre a ideia do documento, SÉRGIO CAVALIERE indagou a MAURO CID: “01 sabe disso?”, e foi respondido positivamente: “sabe…”. A plena ciência de JAIR MESSIAS BOLSONARO sobre a ação dos denunciados foi confirmada no depoimento prestado por SÉRGIO RICARDO CAVALIERE DE MEDEIROS à Polícia Federal 99
INDAGADO por qual motivo após o declarante falar com o Coronel de Infantaria ANDERSON LIMA DE MOURA perguntou: “o 01 sabe disso?’’, respondeu QUE “01” era uma referência ao Presidente da República (JAIR MESSIAS BOLSONARO); QUE quis saber do TC MAURO CESAR BARBOSA CID se o Presidente tinha conhecimento da “Carta Aberta aos Oficiais”, ou seja, se ele tinha conhecimento acerca desse assunto; QUE acredita que o TC MAURO CESAR BARBOSA CID respondeu que sim, que o Presidente tinha conhecimento; (…).
Em audiência de instrução, MAURO CID também confirmou a ciência de JAIR BOLSONARO sobre a confecção da carta”
Isto é, a PGR afirma que Bolsonaro tinha plena ciência de ação para pressionar o Alto Comando. E ela sustenta isso, pois fulano acredita que ciclano respondeu que beltrano estava ciente.
No decorrer da denúncia, Mauro Cid é citado centenas de vezes para fundamentar as acusações. Contudo, o ex-ajudante de Bolsonaro testemunha no âmbito de um acordo de delação premiada, ou seja, uma ferramenta que oferece uma recompensa se a pessoa testemunhar em um processo.
Em resumo, a PGR denuncia Bolsonaro por crimes impossíveis de serem cometidos nas circunstâncias e por crimes que ele não cometeu. Ao mesmo tempo que faz isso sem provas, assenta o terreno para que a ditadura judicial no Brasil se intensifique ainda mais.
Agora que foi oferecida a denúncia, a defesa de Bolsonaro e dos demais réus, e também a procuradoria, terão de apresentar razões finais. Depois disso, será o julgamento, que está previsto para o segundo semestre de 2025.




