América Latina

Bolívia e Brasil: que fazer e que não fazer

Movimento de Evo Morales, no momento, tem muito mais apoio popular do que o governo Lula no Brasil, que abdica da luta em nome de uma aliança com a burguesia

No dia 18, o sociólogo e colunista do Brasil 247 Emir Sader publicou uma coluna com sua interpretação dos eventos que envolveram o primeiro turno das eleições bolivianas. A matéria, intitulada “A derrota da esquerda na Bolívia”, no entanto, apresenta uma forte tendência à capitulação da esquerda no Brasil, já que aparece como um apoio à política de golpe de Estado do imperialismo no país andino.

Sader inicia seu texto com surpresa, o que também demonstra desconhecimento da história recente boliviana, já que a tendência de uma vitória da direita não era grande, mas certeira, já que o único candidato capaz de impedir que a burguesia vencesse as eleições era Evo Morales, impedido de concorrer, como Lula em 2018:

“A Bolívia nos surpreende mais uma vez. Desta vez, negativamente. Em poucos meses, o país passou de um projeto concreto de luta contra o neoliberalismo para um segundo turno de eleições presidenciais, com dois candidatos de direita. Muitos fatores devem ser levados em conta para uma mudança tão radical de uma situação para outra.”.

Em 2019, Evo Morales se preparava para exercer seu quarto mandato à frente da presidência da Bolívia, quando um processo de golpe de Estado muito violento o destituiu. Durante um ano após sua queda, o país foi governado por Jeanine Añez, uma neoliberal.

Somente o fato de o país ter sido governado por Añez já colocaria em xeque a ideia de Emir Sader de que a Bolívia vinha de um “projeto concreto de luta contra o neoliberalismo”. No entanto, em novembro de 2020, novas eleições foram realizadas.

Assim como nas eleições brasileiras de 2018, quando Lula foi impedido de se candidatar em um novo golpe de Estado, uma atualização do golpe de 2016, Evo Morales também foi impedido. Quem ocupou o lugar de Haddad no país vizinho foi Luís “Lucho” Arce, que havia sido ministro de Evo em duas ocasiões distintas.

No entanto, após um começo próximo da militância do MAS e de Evo, Arce passou aos poucos a tomar controle do partido, dando um golpe contra a antiga liderança e contra toda a militância de esquerda.

O caso não é, porém, uma novidade. O mesmo processo já havia acontecido com Rafael Correa no Equador, quando apoiou Lenin Moreno e sofreu um golpe. Já no Peru, um ano após as eleições de Arce, um caso semelhante acontecia quando a justiça impedia Vladimir Cerrón de se candidatar à presidência. Seu substituto, Pedro Castillo, também deu um golpe no partido e encheu seu governo de direitistas que depois o destituíram.

Emir Sader, no entanto, não olha para todo o processo que levou ao enfrentamento entre Evo Morales e Luis Arce, que contou, inclusive, com uma tentativa fajuta de golpe de Estado, em que o general Juan Jose Zúñiga fingiu tentar tomar o poder de Lucho e, posteriormente, admitiu que a tentativa não passava de um combinado com o presidente para tentar impedir que Evo pudesse se candidatar nas eleições deste ano. O que Emir Sader vê é apenas uma disputa de ego que coloca Evo Morales como o grande vilão das eleições atuais:

“O presidente do país era Luis Arce, ministro da Economia de Evo Morales, que buscava a reeleição. Evo se opôs à medida. Álvaro García Linera, que havia sido vice-presidente de Evo, propôs que Arce pudesse exercer um segundo mandato, como já havia feito.

Evo rejeitou a proposta, e uma guerra fratricida entre ele e Arce começou naquele momento.”

Ou seja, segundo a visão do sociólogo, Evo Morales deveria ter caído no mesmo golpe duas vezes, sendo a primeira vez nas eleições que levaram Arce ao governo da Bolívia em 2020 e a segunda nesta, apoiando a pessoa que tomou o partido das mãos da militância evista e se organizou junto de militares para impedir que Evo voltasse a se candidatar à presidência.

Na sequência, mais uma falta de conhecimento do processo político boliviano:

“Este último (Arce) retirou sua candidatura, mas Evo, que legalmente não pode ser candidato por ter exercido dois mandatos como presidente, insistiu em permanecer na disputa. Ele usou sua capacidade de mobilizar camponeses, especialmente em sua região natal, Cochabamba, para paralisar o país.”

Se isso que Emir Sader diz fosse verdade, por que Evo simplesmente não tentou se candidatar à presidência da Bolívia dentro do MAS? Ele mesmo diz que o líder dos sindicatos cocaleiros “insistiu em permanecer na disputa”, o que ele de fato fez, já que tentou fundar outro partido, depois tentou entrar em outro partido já existente, ambos impedidos pela justiça. Se ele tentou a candidatura em outros partidos, por que não tentou dentro do MAS?

A realidade é que ele não poderia tentar a candidatura pelo MAS porque Arce tomou o partido e impediu sua candidatura, participando ativamente do golpe de Estado contra a vontade popular.

Se não bastasse, as críticas de Emir Sader ao movimento popular boliviano beiram os jornais coxinhas que criticavam as ações do MST no Brasil, já que, após dizer que Evo usou sua popularidade “para paralisar o país”, o colunista diz:

“Enquanto isso, a situação econômica, que estava sob controle, começou a gerar inflação e aumentos descontrolados de preços, especialmente de bens de consumo populares. O governo Arce, que parecia ser o responsável pela crise econômica, também perdeu apoio.”

Ou seja, os culpados pela péssima situação econômica do país mais pobre da América do Sul são as pessoas que se mobilizaram contra o golpe de Estado, enquanto o governo responsável pelo golpe “parecia ser o responsável pela crise” e perdeu o apoio.

Não bastasse a ideia de que Evo deveria ter caído pela segunda vez no mesmo golpe, Sader aponta como saída alternativa a candidatura de outro cidadão participe no golpe:

“O impasse estava estabelecido. Andrónico Rodríguez, um jovem líder camponês que era presidente do Congresso, lançou sua candidatura como uma alternativa à polarização. Mas Evo também não o apoiou.”

Na Análise Política de 3ª do dia 19, o companheiro Rui Costa Pimenta explica que as candidaturas que se apresentaram à esquerda nestas eleições cumpriram o papel de impedir o desenvolvimento da mobilização pelo voto nulo, que vinha sendo chamada pelos movimentos sociais bolivianos como denúncia contra o golpe de Estado.

O fato de que Sader acredite que Evo deveria apoiar Andrónico Rodríguez, ainda mais citando que se tratava de uma tentativa de impedir a polarização do país, demonstra a completa subserviência do colunista à política da burguesia imperialista, justamente quem leva adiante o neoliberalismo em nossa região, o que também rompe com a ideia anteriormente apresentada de que a preocupação do sociólogo é em conseguir uma alternativa ao neoliberalismo.

Na sequência, é apresentada novamente a ideia de que quem governava a Bolívia nas últimas décadas era o MAS:

“A direita, que havia sido marginalizada do governo pelos vinte anos de governos do MAS, encontrou uma maneira de ocupar seu espaço, lançando seus dois candidatos tradicionais, que começaram a se destacar nas pesquisas.”

Emir Sader realmente acredita que Evo Morales não pôde se candidatar por ter cumprido dois mandatos como presidente. Porém, não leva em consideração que Evo já havia rompido com essa ideia há muito tempo, tanto é que cumpriu três mandatos e havia sido eleito para o quarto quando foi derrubado no golpe de 2019.

Mas, se o problema real não é a quantidade de vezes que Evo Morales foi eleito presidente, por que a burguesia queria tanto impedir sua candidatura?

A resposta é simples: por mais que Evo Morales pudesse capitular, o que aconteceu algumas vezes, inclusive nos já comentados episódios dos golpes de 2019 e de 2020, o imperialismo não poderia permitir a eleição de alguém minimamente popular, já que há a necessidade de se fazer terra arrasada da economia dos países latino-americanos, vide o que acontece na Argentina atualmente.

Sendo assim, as eleições atuais jamais poderiam permitir que alguém contrário ao projeto de destruição neoliberal fosse vencedor. As eleições já estavam com o resultado preestabelecido pela burguesia imperialista, fosse um candidato esquerdista ou direitista, qualquer opção levaria a um governo extremamente neoliberal.

A única oposição viável a esse projeto, seria a de uma candidatura de Evo Morales, o único candidato realmente popular do país.

Essa análise acaba com a ideia de Emir Sader de que seria possível vencer a direita neoliberal nas eleições deste ano. Mesmo assim, o colunista se surpreendeu:

“Evo, por sua vez, começou a fazer campanha, inclusive nas ruas, pelo voto nulo. No primeiro turno, o que parecia impensável finalmente aconteceu. Os dois candidatos de direita chegaram ao segundo turno. O candidato oficial do MAS e Andrónico receberam poucos votos, assim como o voto nulo proposto por Evo Morales.”

Evo Morales conseguiu fazer com que 20% do eleitorado votasse nulo nas eleições, uma grande vitória política. Somados, os dois candidatos “esquerdistas” obtiveram 8% dos votos.

É preciso entender que o voto nulo, nas atuais circunstâncias, é um voto muito crítico, o que demonstra o nível de consciência política dos evistas durante o primeiro turno, desmascarando completamente o circo armado pela burguesia para o golpe contra a vontade popular.

O alto nível de consciência política demonstra que o próximo governo enfrentará uma forte resistência às políticas de terra arrasada que o imperialismo pretende implantar no país.

Além disso, o segundo turno promete uma vitória ainda maior à política popular, já que, agora, não há impedimentos como o alto número de candidatos para impedir o voto nulo, podendo subir a uma porcentagem muito mais alta que os 20% da primeira etapa.

A proposta de Emir Sader para a esquerda boliviana, porém, parece ser diferente da de Evo dos 1,6 milhão de bolivianos que se negaram a votar em conjunto com o imperialismo no primeiro turno:

“Assim, a Bolívia se encontra às vésperas do retorno da direita ao governo, com o fim do período virtuoso dos governos do MAS, que contavam com amplo apoio popular. Um, mais moderado, Rodrigo Paz, senador de centro-direita; o outro, Jorge Tuto Quiroga, direitista tradicional, defensor da privatização de empresas públicas e do retrocesso do modelo neoliberal.

Rodrigo Paz venceu no primeiro turno e se tornou o favorito para se tornar o primeiro presidente de direita da Bolívia em 20 anos. Evo Morales, por sua vez, pode se considerar vitorioso. Seus apoiadores apedrejaram e vaiaram Andrónico quando ele foi votar, tornando-o seu principal adversário.”

Ou seja, após Emir Sader dizer que Evo deveria ter votado em um dos esquerdistas golpistas para impedir um governo neoliberal, Emir Sader já começa a pintar a imagem do até então demônio neoliberal Rodrigo Paz como “moderado”, “de centro-direita”, alguém mais palatável do que Jorge Quiroga, um “direitista tradicional”, “defensor da privatização de empresas públicas e do retrocesso do modelo neoliberal.”.

Não eram os dois, até então, nesse mesmo texto, dois neoliberais? O que mudou em alguns parágrafos? A realidade é que, caso as eleições do segundo turno fossem entre Quiroga e alguém ainda mais direitista, pelo menos da ideologicamente, Sader estaria agora suavizando sua imagem em detrimento do outro direitista e assim sucessivamente, até o infinito.

Essa é a política que vem sendo praticada pelo PT no Brasil e que não vem dando resultado algum, mas que é defendida simplesmente por ser do PT, a política da frente ampla e do mal menor. Foi assim que setores da esquerda brasileira, por exemplo, chamaram voto em Kamala Harris, a assassina de mulheres e crianças palestinas, para combater Donald Trump.

Na prática, o que Emir Sader está defendendo é a imobilidade popular e a eterna submissão aos desejos do imperialismo para o país, o que contrasta com as bravatas de soberania que o governo brasileiro vem apresentando recentemente. Sua preocupação é que, caso Lula não possa ser candidato, não faça nada, pois muitos cargos estariam em jogo caso as eleições não acontecessem normalmente, mesmo que isso signifique sacrificar milhões de vidas em um genocídio econômico e ditatorial.

A defesa dessa política também encontra raízes na direitização completa da política do Partido dos Trabalhadores, já que, caso fosse dada voz à razão e a esquerda brasileira apoiasse a candidatura de Evo Morales contra a ditadura judiciária que vive a Bolívia, ou tratasse como positivo o chamado ao voto nulo da esquerda boliviana, o apoio à ditadura do Judiciário no Brasil poderia colocar as eleições do ano que vem em maus lençóis, pois quem é perseguido no Brasil, no momento, é Bolsonaro, que teria toda a legitimidade do mundo para chamar o voto nulo no ano que vem caso não pudesse ser candidato ou não pudesse indicar alguém realmente de acordo com sua política, como sua esposa ou filhos.

Ou seja, a defesa do regime político boliviano que se transformou em uma ditadura contra sua população, encontra raízes no apoio à ditadura do atual regime político brasileiro pós-golpe de 2016, que já vinha de objetivos mesquinhos de parte da esquerda burocrática, como vemos no parágrafo a seguir:

“A esquerda boliviana sofreu uma dura derrota, resultado, em parte, da guerra desencadeada entre ex-membros do MAS. Evo surge como a única expressão da esquerda boliviana com algum nível de apoio. Mas ele continua impossibilitado de concorrer a um cargo, devido a uma decisão do Judiciário, e sem maioria no novo Congresso, dominado pela direita, que possa reverter seu impedimento.”

Ao ler que “Evo surge como a única expressão da esquerda boliviana com algum nível de apoio”, o leitor se depara com a única informação parcialmente verdadeira do texto de Emir Sader, que só não é completamente real pois o resultado eleitoral e a ampla mobilização nacional demonstram que seu apoio é mais forte no meio da população boliviana do que em todos os momentos de vacilações e capitulações recentes que não levaram a esquerda a lugar algum.

Por fim, Emir Sader se contradiz, já que havia dito que Evo ainda tem apoio popular, mas acaba por dizer ser esse “o fim” da política de Evo Morales:

“Um triste fim para o período político mais importante da história recente da Bolívia. Evo mantém altos níveis de apoio por ter sido o líder que personificou esse processo. No entanto, sem chances de se candidatar, ele também precisa responder pela sabotagem de uma candidatura de esquerda, representada por Andrónico.”

Na verdade, não é um fim. Sader pensa isso pois não luta e tem como único e exclusivo objetivo as eleições. O movimento de Evo Morales, no momento, tem muito mais apoio popular do que o governo Lula no Brasil, que abdica da luta em nome de uma aliança com a burguesia que está acabando com sua credibilidade e a do PT em relação aos trabalhadores.

É apenas o começo de uma nova etapa política da esquerda boliviana, que se inicia com uma alta consciência da população e um grande enfrentamento ao domínio do imperialismo sobre o grande e importantíssimo país do centro da América do Sul. Que essa política se espalhe para todos os países de nosso continente.

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