Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Coluna

Batom na estátua

Alexandre de Moraes justifica condenação de moça que aparece em vídeo "com as mãos conspurcadas de batom vermelho"

Condenada a 14 anos de prisão, 12 dos quais em regime fechado, a cabeleireira Débora Rodrigues cometeu o crime de rabiscar com batom a estátua da Justiça no dia do quebra-quebra em Brasília, o fatídico 8 de janeiro. “Perdeu, mané”, escreveu ela, em clara referência à frase com que o ministro Luís Roberto Barroso, hoje presidente do STF, respondeu a um manifestante que lhe indagou se o código-fonte da urna eletrônica seria liberado. O fato ocorreu em dezembro de 2022, em Nova York.

Na ocasião, desvestido da toga, o ministro desceu dos tamancos e do empolado juridiquês e, na terra do Tio Sam, falou no português da malandragem (“Perdeu, mané! Não amola!”). Até aí, tudo certo. O problema é os “manés” levantarem a voz. Aí não pode. Em seu voto condenatório, o poderoso ministro Alexandre de Moraes assim justificou a pena:

“No caso presente, a ré estava indiscutivelmente alinhada à dinâmica criminosa, como se infere do vídeo divulgado por sites jornalísticos, no qual a acusada vandaliza a escultura ‘A Justiça’ e, após, mostrando as mãos conspurcadas de batom vermelho, comemora, sorrindo em direção à multidão que invadira a Praça dos Três Poderes e outros prédios públicos”. [grifos nossos]

Para chegar aos 14 anos, o ministro enquadrou a mulher em cinco crimes: 1. abolição violenta do Estado Democrático de Direito (4 anos e 6 meses de reclusão), 2. golpe de Estado (5 anos de reclusão), 3. dano qualificado (1 ano e 6 meses de detenção, mais 50 dias-multa de ⅓ do salário mínimo), 4. deterioração do patrimônio tombado (1 ano e 6 meses de reclusão, mais 50 dias-multa), 5. associação criminosa armada (1 ano e 6 meses de reclusão).

Em primeiro lugar, que perdoem a ignorância deste escriba, os crimes 1 e 2, a bem da verdade, mais parecem um só – ou seria possível abolir o Estado Democrático de Direito sem dar um golpe de Estado ou vice-versa?  Considerando que sejam duas coisas, o mais sensato é que se enquadre o réu naquela que melhor descreve o seu ato. No caso em questão, beira o absurdo que se condene a moça por qualquer desses crimes.

Nossos amigos da esquerda pequeno-burguesa, no entanto, advogam a justeza do magnânimo Alexandre de Moraes, um homem de coragem. Os tais crimes, segundo eles, seriam automaticamente cometidos por todos os manifestantes que tenham acampado em frente aos quartéis, participado da baderna e publicado vídeos nas redes sociais. Enfim, para resumir, eram “bolsonaristas” fazendo arruaça, portanto criminosos e “golpistas”. Diga-se que essa estratégia da duplicação de crimes (e de penas) também está sendo usada no processo contra o próprio Bolsonaro.

Os crimes 3 e 4 (dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado) também são sobreposições, ou seja, um mesmo ato é enquadrado em duas leis, gerando duas penas. Cada um desses crimes acarreta também 50 dias-multa, ou seja, um total de 100 dias-multa, algo em torno de R$ 50 mil. Finalmente, o quinto crime: associação criminosa armada. Nem mesmo uma lata de spray a mulher carregava; rabiscar a pedra com batom é o suprassumo do improviso.

De qualquer forma, o Estado Democrático de Direito não foi abolido nem se concretizou um golpe de Estado. Segundo os tribunais, porém, na impossibilidade de punir um golpe de Estado consumado, pune-se a “tentativa”.  Dessa forma, fica justificado o bem-sucedido golpe de 2016, “com Supremo, com tudo”, na esteira do qual Alexandre de Moraes ascendeu ao STF, indicado por Michel Temer. Duro de engolir.

Para reforçar seus “indiscutíveis” argumentos, o ministro Moraes alega que Débora Rodrigues teria apagado possíveis “provas” de seu celular, o que caracterizaria tentativa de obstrução da Justiça. Escreveu ele:

“[…] apagar deliberadamente os dados do celular representa um forte indício de tentativa de obstrução da Justiça, haja vista que, em investigações criminais, dispositivos eletrônicos frequentemente contêm provas essenciais, como mensagens, registros de chamadas, localização e interações em redes sociais”.

E, por fim, ressaltou que não se trata de punir “manifestação crítica”, mas sim ações que “buscam violar princípios republicanos, o que é inconstitucional”. Salvo engano, a Constituição não traz veto à “violação de princípios republicanos”. Seria bom que os ministros citassem o texto legal, não apenas a sua interpretação. Ultimamente citam a Constituição a todo momento, sem nunca indicar o artigo, o parágrafo, o inciso, a alínea ou o que for.

O insuspeito jornalista Elio Gaspari, em sua coluna de ontem, publicada simultaneamente na Folha e no Globo, compara a condenação – em 1970, no auge da ditadura militar, sob a vigência do AI-5 – dos oito autores do sequestro do embaixador Charles Elbrick, ocorrido em setembro do ano anterior, com a condenação da moça do batom na estátua. Um picolé de chuchu para quem adivinhar quem pegou a pena maior. O regime de exceção condenou o grupo a 8 anos de reclusão. Hoje, em nome da democracia, a rabiscadora vai ter de cumprir 14. Flávio Dino, aliás, endossou a dosimetria de Moraes.

E a esquerda, presa ao discurso do combate ao fascismo, aplaude a prisão de pessoas do povo por períodos absurdamente longos e motivos frágeis. Essas pessoas podem estar erradas em sua concepção política, nas ideias que defendem, mas, basicamente, estão sendo punidas por se manifestarem. Se fossem de esquerda, receberiam o mesmo tratamento – ou até pior. É lamentável que a esquerda se recuse a enxergar que nada disso beneficia os trabalhadores. O tribunal está limpando a área para a burguesia eleger um candidato sem voto. As cabeleireiras são apenas “manés” que não sabem qual é o seu lugar.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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