O artigo Escolhas eleitorais e dissonância cognitiva, de Maurício Rands, publicado nesta segunda-feira(11) no Brasil247, descreve um quadro equivocado das eleições das brasileiras, pois, segundo argumenta, o resultado das urnas contradiz aquilo que mostram determinadas pesquisas de opinião pública.
Quando Rands escreve que a “dissonância entre discurso e voto mantém baixa qualidade da política brasileira”, está apenas utilizando uma forma rebuscada de dizer que o brasileiro não sabe votar. Além de ser o reforço de um velho preconceito, atira para as costas da população o que ele chama de “baixa qualidade da política”.
Trata-se de uma simplificação do problema, pois a baixa qualidade política é um fenômeno global e tem a ver com a própria crise do capitalismo. Além disso, o articulista se esquece que a votação no Brasil é uma coisa muito complexa e extremamente antidemocrática.
Em 2006, por exemplo, Rui Costa Pimenta (PCO) concorreu às eleições presidenciais. Seu nome aparecia à frente de Cristovam Buarque (PDT) nas pesquisas. No entanto, no debate entre candidatos da Rede Globo o pedetista foi convidado e Pimenta ficou de fora. O resultado imediato foi Buarque ultrapassar o candidato do PCO nas intenções de voto. Como se não bastasse, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) achou por indeferir sua candidatura alegando problemas nas prestações de contas de 2002.
O exemplo acima é uma pequena amostra de como as eleições no Brasil são montadas para dificultar ao máximo, ou mesmo impedir, que grupos de esquerda ou combativos consigam eleger candidatos.
Cabe ainda uma observação sobre as prestações de contas. O partido tem de vencer uma montanha burocrática, e uma diferença mínima acaba inviabilizando uma candidatura, o que é absurdo. Além disso, passa a mensagem para a população de que se está fazendo uso indevido da verba eleitoral. Isso dá munição para a direita e caluniadores acusarem o PCO de viver de dinheiro público, o que é totalmente falso.
As regras para as campanhas eleitorais mudam o tempo todo, as exigências praticamente inviabilizam que partidos pequenos lancem candidatos. Reina a mais completa arbitrariedade imposta pelo TSE, que é praticamente um anexo do STF (Supremo Tribunal Federal), corte que se notabilizou por atropelar o Legislativo e criar leis.
O tempo de campanha é cada vez menor, as restrições para que se cole cartazes ou se utilize faixas, carros de som etc., acabam por beneficiar os partidos grandes e ricos, cujos candidatos sempre têm visibilidade e espaço na grande imprensa.
Essas considerações acima apenas resumem o que acontece no plano geral, pois ainda existem as peculiaridades regionais, clientelismo etc., o que torna a questão eleitoral no Brasil ainda mais complexa.
Nada de novo
Rands descreve assim o momento político brasileiro: “Nossa sociedade, tão dividida, está atormentada por fatos recentes de profundo alcance para a vida institucional do país. Esses fatos permitem avaliar a coerência dos principais atores políticos com a retórica que proclamam. (…) vivemos um momento de dissonância cognitiva ampliada do eleitorado”.
A bem da verdade, turbulência na política brasileira nunca foi novidade. O País passou por um golpe recente (2016) ainda em marcha. Lula foi preso inconstitucionalmente, voltou a ser presidente; Jair Bolsonaro passa a sofrer uma verdadeira perseguição judicial; a burguesia prepara o desembarque dos dois principais candidatos para apresentar uma “terceira via” ferozmente neoliberal.
O STF, que instaurou uma ditadura judicial no Brasil, como era de se esperar, está entrando em choque com setores do Congresso. Mas isso é apenas decorrência dessa nova fase do golpe, que pretende colocar um “Milei” no Planalto.
Pesquisas x Votos
Maurício Rands apresenta uma série de índices para demonstrar que o voto do eleitor não corresponde àquilo que dizem as pesquisas de opinião, a saber: “tarifaço de Trump e sua tentativa de interferir no STF (57% são contra), emendas parlamentares (82% acham que os recursos são desviados), invasões golpistas às sedes dos Poderes em 08/01/23 (86% são contra), anistia a Jair Bolsonaro (61% rejeitam), prisão do ex-presidente Bolsonaro (48% a favor e 46% contra), atuação do Congresso (78% acham que age mais em benefício próprio) e o motim na Câmara e no Senado, ainda sem pesquisas. No plano internacional, a invasão da Ucrânia pela Rússia, o governo Trump e sua política externa (61% de rejeição), o atentado do Hamas em 07/10 e o massacre dos palestinos pelo governo Netanyahu em Gaza são alguns fatos marcantes. Mas, contraditoriamente, pesquisas de intenção eleitoral indicam largo apoio a forças políticas contrárias às opiniões acima reveladas”.
Antes de mais nada, não se pode chamar a manifestação do oito de janeiro de invasão golpista. Não houve motim no Congresso, uma vez que a ação foi legítima e até mesmo a esquerda já obstruiu a mesa. Além disso, o Hamas não fez nenhum atentado, mas uma ação contra forças invasoras. A insinuação de que a Resistência palestina seja terrorista é inaceitável.
Maurício Rands não percebe que, para o eleitor, Jair Bolsonaro aparece como sendo antissistema. Outras pesquisas já demonstraram uma ampla rejeição ao STF; e Alexandre de Moraes, que recentemente deu um dedo do meio para a torcida em um estádio, é percebido (corretamente) como um ditador.
O governo Lula, o PT, a esquerda de modo geral, aparecem como apoiadores de Moraes e do STF. Portanto, não existe exatamente uma “dissonância cognitiva”. Além disso, procurar apoio do Supremo, em vez da base popular, é que configura um rebaixamento da política.
Existe ainda a questão da política econômica do governo Lula, capitaneada por Fernando Haddad, que é uma verdadeira tragédia. O atual presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, praticamente funcionário do “mercado”, era homem de confiança do ministro, e sua atuação é idêntica à do bolsonarista Campos Netto, deixando a taxa de juros na estratosfera, penalizando a população e barrando o crescimento da economia.
Generalizações
No restante de seu artigo, ignorando a complexidade e falta de democracia no sistema eleitoral brasileiro, Maurício Rands sugere que “Para superar a ‘dissonância cognitiva’ entre os valores proclamados e suas escolhas eleitorais, o eleitor bem que poderia abrir um arquivo e nele registrar posicionamentos de candidatos que estarão no próximo cardápio eleitoral, sobre esses e outros temas que tenham conexão com os seus valores”.
O articulista, além de sua ilusão com as eleições, tenta apelar para a incoerência entre patriotismo e apoiar o tarifaço de Trump. Rands também adere ao autoritarismo, concordando com o editorial do Estadão, “no seu editorial de 8/8/25: ‘A punição dos que sequestraram o Congresso a título de livrar a cara de Jair Bolsonaro tem de ser exemplar’”. E completa “Não se pode premiar com a leniência quem atenta contra o funcionamento de um Poder”. Por que não se poderia, em uma democracia, se contestar o funcionamento de um dos Poderes? Além de não ter sido um atentado, a ideia em si é extremamente autoritária.
Esses posicionamentos de certa esquerda, que se tornou defensora das instituições do Estado burguês, é que fazem com que o eleitorado se afaste. O mais curioso é que esses setores acham que o problema está no eleitor, não em sua política a cada dia mais reacionária.




