O editorial de ontem do Estadão tecia loas ao presidente do Congresso, o direitista Hugo Motta, do Partido Republicanos, por sua resistência a pautar a “anistia aos golpistas”, algo que, segundo o jornal, “não interessa ao país”. Motta está voltado para a PEC da Segurança Pública, que estaria “em total consonância com as preocupações reais dos brasileiros”. De resto, o editorialista conclui que o único objetivo dessa “iniciativa desarrazoada” de promover anistia seria “reabilitar politicamente Jair Bolsonaro e preservar a coesão de um movimento radicalmente antidemocrático que nunca quis o bem do Brasil”. Assim diz o jornal que, embora considerasse “uma escolha difícil”, apoiou Bolsonaro, em disputa com Fernando Haddad, no segundo turno da eleição de 2018.
De Bolsonaro se pode dizer quase tudo, menos que tenha cometido o famoso “estelionato eleitoral”. Desde a candidatura, sempre deixou claras suas posições, que, coalhadas de rompantes racistas, grosseiros e ultradireitistas, não impediram a burguesia bem-pensante de lhe dar uma chance. Com Paulo Guedes na economia e o lava-jateiro Sergio Moro na Justiça, a burguesia deu o braço a Bolsonaro para conduzi-lo ao altar da sacrossanta democracia. Ele ganhou a eleição, enquanto a mesma democracia pôs Lula na prisão. Fernando Haddad, na ocasião, era chamado de “poste” pela burguesia.
A coisa, no entanto, tinha tudo para fugir ao figurino burguês. Bolsonaro conseguiu por si mesmo angariar uma grande base popular, ou seja, votos e, por isso mesmo, certa independência da burguesia, que, por falta de opção, apostou nele para dar continuidade ao projeto golpista de Michel Temer. Agora, Bolsonaro coleciona acusações na Justiça e virou persona non grata entre a mesma burguesia que não se incomodou com os elogios ao torturador Brilhante Ustra, com a palestra no Clube Hebraica em que ele disse a uma animada plateia de sionistas que um quilombola tinha peso medido em arrobas, com o desejo de matar um filho que se revelasse gay e com outras declarações desse tipo divulgadas no período de campanha eleitoral. Nada disso impediu a direita “limpinha” de apoiar Bolsonaro, como se viu. Essas questiúnculas escandalizavam apenas a esquerda, afastada do jogo por causa das acusações de corrupção contra o PT.
Bolsonaro, no entanto, desde o início comprou duas brigas difíceis de ganhar: uma com a Rede Globo, a outra com o STF. Seu eleitorado popular, marcadamente evangélico, já vinha substituindo a Globo pelas lives da internet, pelo WhatsApp e pelas rádios e televisões dos pastores – e hoje a emissora da família Marinho se esforça para seduzir essa camada da população, incluindo cantores de música gospel e personagens evangélicos nas novelas e outros programas. Com o STF, porém, a briga era mais difícil. O mais alto tribunal do país é o guardião dos interesses do estado burguês, ou, dito de outra forma, é a principal representação política da burguesia financista brasileira, caudatária das políticas imperialistas.
Diga-se que a suposta trama golpista não teria tanta importância se apenas o nome de Lula tivesse sido cogitado nos planos de assassinato. O grande problema da conspiração é que ousaram pensar em eliminar também o juiz Alexandre de Moraes. Como os juízes democráticos do Prerrogativas já nos explicaram, uma ofensa a um ministro do STF é uma ofensa à própria instituição, que, por sua vez, é um dos pilares da “democracia”. Quando chamou o ministro Flávio Dino de “gordola”, o ex-youtuber Monark, na verdade, ofendeu a “democracia”.
Segundo o Estadão, o país não está interessado em “anistiar os golpistas”, pois teria coisas mais importantes com que se preocupar. Que a burguesia seja cínica não chega a ser novidade, como sabemos. É de lamentar, no entanto, que a esquerda faça coro com o Estadão e a Globo.
Partidos de esquerda, sob a liderança de Guilherme Boulos (PSOL) e Lindbergh Farias (PT), convocaram manifestação popular contra a anistia, reunindo cerca de 5.500 pessoas. Bolsonaro convocou os seus a favor da anistia e pôs na avenida Paulista quase 60 mil manifestantes. Os analistas da esquerda disseram que a manifestação de Bolsonaro “flopou”, sob o argumento de que o ex-presidente prometera conseguir a adesão de 500 mil pessoas, no mínimo. Nessa matemática peculiar, ficaria comprovado que, como diz o Estadão, ninguém quer a anistia. Para não deixar dúvidas, o Datafolha concluiu que 52% da população quer ver a turma toda do 8 de janeiro na cadeia, o que deve soar como “expressiva maioria”.
Os analistas da esquerda pequeno-burguesa repetem constantemente que o STF, embora tenha sido o sustentáculo do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, teria passado por um processo de regeneração e, agora, estaria “do lado certo da história”. Tudo bem. Eles anistiaram os golpistas de 2016, que são gente do andar de cima da sociedade, mas são contra anistiar a arraia-miúda. Para não defender o Bolsonaro, a esquerda abre mão de defender as liberdades democráticas do povo, entre as quais a de livre manifestação, e contribui para o recrudescimento do autoritarismo no país.