Em dezembro de 2024, após mais de 20 anos de negociações, o Mercosul e a União Europeia (UE) fecharam um acordo de livre comércio, que pretende retirar progressivamente tarifas sobre 90% dos produtos comercializados entre os blocos. Com o acordo, potencialmente, se criou uma das maiores zonas de livre comércio do mundo, abrangendo 718 milhões de pessoas e Produto Interno Bruto (PIB) de aproximadamente 22 trilhões de dólares. Em termos de volume de comércio entre os dois blocos, é o maior acordo comercial negociado pelo MERCOSUL e um dos maiores pactuados pela União Europeia. A UE é o segundo principal parceiro comercial do Brasil, com corrente de comércio (total das transações comerciais entre dois países ou blocos, considerando tanto as exportações quanto as importações) de aproximadamente US$ 92 bilhões.
O acordo é de essência neoliberal, apesar dessa ideologia vir perdendo força no mundo, nas últimas décadas. Ao contrário da tendência corrente na economia global, o acordo prevê o fim de tarifas de importação, a proibição de impostos sobre exportações e o acesso das empresas estrangeiras, a compras governamentais. Resumidamente, os principais tópicos do acordo, são:
- Redução Tarifária: eliminação gradual de tarifas sobre 91% dos produtos exportados pela União Europeia para o Mercosul e 93% dos exportados pelo Mercosul à UE;
- Agronegócio: acordo sobre cotas específicas para produtos como carne bovina, aves, açúcar e etanol, permitindo maior acesso aos produtos. Ficou garantida a proteção de acordos geográficos europeus para itens como queijos e vinhos;
- Compras Governamentais: abertura dos mercados de compras governamentais, permitindo que empresas de ambos os blocos participem de licitação na área geográfica do bloco como um todo;
- Propriedade Intelectual: definição de normas para proteção de direitos de propriedade intelectual, incluindo patentes, marcas registradas e direitos autorais
- Desenvolvimento Sustentável: foram definidos compromissos mútuos com o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, incluindo medidas para prevenir o desmatamento na Amazônia;
- Serviços e investimentos: liberalização de setores como telecomunicações, serviços financeiros e transporte, facilitando investimentos e operações de empresas entre os blocos;
- Matérias-Primas: taxas mínimas ou nulas sobre minerais críticos para a UE, essenciais para a transição energética verde.
Com o Acordo, o governo brasileiro espera fortalecer a diversificação das parcerias comerciais e possibilitar a modernização do parque industrial, através da integração às cadeias produtivas da União Europeia. O governo brasileiro está apostando que o acordo pode resultar em um aumento do PIB e atrair investimentos diretos para o Brasil. Uma nota técnica publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chamada “Avaliação dos impactos do acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia”, concluiu que, se o acordo entrar em vigor, o Brasil seria beneficiado m crescimento do PIB, atração de investimentos e através de ganhos na balança comercial.
Segundo a análise do Ipea, entre 2024 e 2040, o acordo provocaria um crescimento de 0,46% no PIB brasileiro, desempenho que seria superior aos países da União Europeia (elevação de 0,06% no PIB) e dos demais membros do Mercosul (0,20% de crescimento). Segundo o estudo, o acordo aumentaria os investimentos no Brasil em 1,49%, na comparação com o cenário sem a existência dele. Na balança comercial, o país teria um ganho de US$ 302,6 milhões, anual, no período entre 2024 e 2040, ante US$ 169,2 milhões nos demais países do Mercosul e queda de US$ 3,44 bilhões na UE, com as reduções tarifárias e as concessões de cotas de exportação previstas pelo acordo.
As simulações realizadas pelo Ipea indicaram ainda que o acordo beneficiaria quase todos os setores do agronegócio e as perdas do Brasil seriam concentradas em alguns setores da indústria, com destaque para: veículos e peças, metais ferrosos, artigos do vestuário e acessórios, produtos de metal, têxteis, farmacêuticos, máquinas e equipamentos e equipamentos eletrônicos. Um dos argumentos dos técnicos do Ipea é a diversificação da economia brasileira, que possibilitaria à economia brasileira ganhos mais amplos. Outro argumento utilizado, para embasar a conclusão de que o Brasil se beneficiará mais que os parceiros europeus, é o fato de que a economia da UE é muito maior do que a brasileira e, segundo a análise, quando há um acordo entre parceiros heterogêneos, o menor tende a obter maiores benefícios.
Até onde se sabe, o setor no Brasil que será mais beneficiado com o acordo é o agronegócio, com a redução de tarifas para produtos nos quais o país é muito competitivo como: suco de laranja, frutas, café solúvel, peixes, crustáceos, óleos vegetais, açúcar, etanol, arroz, ovos, mel e carnes. Não por acaso, as reações mais fortes contra o Acordo vêm do setor agrícola europeu, principalmente em países como França, Espanha e Polônia. Os agricultores temem que a entrada de produtos agrícolas, com destaque para carne bovina, aves e açúcar, possam quebrar parte da produção local nesses países.
No setor manufatureiro, apesar da Confederação Nacional da Indústria (CNI) ter declarado vantagens em alguns setores como têxtil, químico, madeireiro, aeronáutico e autopeças, o Brasil deverá perder com o Acordo. A retirada de tarifas para produtos europeus deve atingir em cheio setores industriais brasileiros que são atrasados em relações aos países desenvolvidos, como os de máquinas, equipamentos eletrônicos e produtos farmacêuticos. O Brasil vem de anos de perda da indústria no PIB e isso levou a uma grande defasagem tecnológica em muitos setores. Um outro aspecto é que empresas concorrentes da Europa dispõem de condições para investimentos em tecnologia muito mais favoráveis do que o Brasil.
Um exemplo muito direto, que revela o risco do Acordo para a indústria brasileira é o custo do financiamento industrial. Em dezembro o Banco Central Europeu cortou as taxas de juros pela terceira vez consecutiva, visando enfrentar o baixo crescimento da economia. A taxa de depósito está em 3,00% e espera-se que o BCE corte em 0,25% em sua reunião de 30 de janeiro. No Brasil, paraíso mundial dos banqueiros, a taxa Selic está em 12,25%, segundo lugar no infame ranking dos maiores juros reais do planeta. O atual patamar de juros reais (após o desconto da inflação) no Brasil é de 9,48%, atrás apenas da Turquia, com taxa de 13,33%. Uma parte significativa dos industriais brasileiros, inclusive, não estão preocupados com esse problema do financiamento industrial, porque ganham muito mais dinheiro com a “tesouraria”, do que propriamente no seu empreendimento.
Como tem alertado o economista Paulo Nogueira Batista Junior, a retirada das tarifas no Acordo com a UE pode acelerar o processo de desindustrialização brasileiro, frustrando completamente o esforço de reindustrialização que o país, timidamente, vem realizando. Batista Jr tem criticado duramente também outros aspectos do acordo, como o acesso a empresas estrangeiras a compras governamentais. Ele lembra que o Brasil atualmente tem total liberdade para estabelecer políticas de compras públicas, visando o interesse nacional. E o acordo limita essa autonomia, que é crucial para o país. O economista considera que o acordo Mercosul-UE foi um erro estratégico, que pode comprometer o desenvolvimento nacional, além de restringir a autonomia do Brasil na execução de políticas públicas fundamentais.
Os riscos do Acordo para o setor industrial, parecem de fato serem os mais críticos, inclusive o de acelerar a desindustrialização. Alguns especialistas têm apontado, além disso, assimetria nas concessões mútuas, o que poderá expor a indústria nacional a uma concorrência acentuada com os produtos europeus.
O preocupante na decisão do governo de assinar o Acordo, é que ela reforça a certeza de que falta ao país um projeto estratégico de desenvolvimento nacional. Um forte sintoma disso são os próprios benefícios estimados do Acordo: há possibilidades, conforme o estudo do Ipea mencionado acima, de ganho nas exportações brasileiras, de US$ 302,6 milhões por ano, algo em torno de R$ 1,8 bilhão, pelo câmbio atual. Ocorre que, esse tipo de ganho, obtido talvez às custas do sacrifício de setores importantes da indústria, é uma fração minúscula dos gastos com juros da dívida pública, estimados pela Auditoria Cidadão da Dívida, em R$ 55 bilhões de gastos adicionais por ano, para cada 1% de aumento na taxa Selic.