A esquerda pequeno-burguesa mundial, principalmente os grupos trotskistas como a LIT-QI, é conhecida por sua defesa total dos golpes de Estado organizados pelo imperialismo. Isso não poderia ser diferente com a Síria. Os EUA, “Israel” e a Al-Qaeda, renomeada HTS, derrubaram o governo nacionalista de Bashar al-Assad em dezembro de 2024. Esse grupo – e muitos outros – considerou o ocorrido uma revolução. Até aí, infelizmente, não houve nada de novo. A LIT-QI, porém, foi capaz de algo ainda mais impressionante: enviou uma delegação à Síria e, mesmo assim, não conseguiu entender nada do que estava acontecendo no país.
O texto em questão é “Relato de viagem à Síria pós-Assad”, de Fábio Bosco, que no início, já afirma:
“Logo na entrada de Damasco já se pode ver os sinais de pobreza a que foi submetida toda a população. Galões de 5 litros de gasolina são vendidos nas ruas por US$ 10 para abastecer veículos e aquecer as residências, pois a energia elétrica não está disponível durante as 24h do dia (no bairro em que eu estava, eram apenas 2 horas por dia). Desde a queda da ditadura, em 8 de dezembro, o preço dos alimentos, à exceção do pão, baixou porque os camponeses podem trazer sua produção para as cidades sem a necessidade de pagar pedágio em cada checkpoint que encontravam no caminho.”
Primeiro, é preciso destacar que o pão não pode ser considerado algo de segunda importância no Oriente Médio; ele certamente é um dos itens principais da alimentação do povo. Segundo, e mais importante, a LIT-QI coloca a culpa da pobreza na “ditadura” de Assad. Eles ignoram que o país foi vítima de uma guerra brutal imposta pelo imperialismo durante 13 anos, que os EUA ocuparam a região do país onde está o petróleo e que ainda impuseram as sanções mais pesadas do mundo, o Ato César. Mas, para os pseudotrotskistas, o problema nunca é a monstruosa intervenção do imperialismo, e sim o governo nacionalista, vítima desse ataque.
Para tentar melhorar a imagem do golpe de Estado, o texto tenta afirmar que Assad, que participava do Eixo da Resistência e ajudava a armar os palestinos, e o Hesbolá, era, na verdade, um inimigo dos palestinos. Ele afirma que o campo de refugiados de Iarmuc “foi arrasado por bombardeios aéreos feitos pelo ditador Assad. Passamos em frente a dois hospitais que estão no chão, destruídos, e também a mesquitas, uma delas onde ocorreu o primeiro grande massacre, quando o ditador Assad bombardeou a mesquita na sexta-feira, quando a movimentação de pessoas é muito maior”.
E segue: “Os primeiros combates foram entre as forças da ditadura contra a juventude palestina dentro do campo, onde posteriormente entraram organizações salafistas”. Aqui é preciso uma rápida descrição do que aconteceu na Síria.
As organizações salafistas que eles citam são a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, mercenários ligados ao imperialismo norte-americano. São eles que estão no governo agora. A guerra civil se deu contra esses setores e foi brutal. O campo de Iarmuc foi um dos locais onde houve uma batalha gigantesca. Nessas condições, é ridículo culpar Assad por sua destruição, assim como a destruição do resto do país. A culpa é totalmente do imperialismo.
Em relação ao confronto dos palestinos com Assad, a questão é simples. Quando começou a Primavera Árabe, houve manifestações populares, afinal, o governo Assad tinha muitos problemas. Ele cometeu um grande erro político ao reprimir a mobilização. Até o Hamas rachou com ele nesse momento, mas, ao ficar claro que o imperialismo estava contra Assad, o partido revolucionário palestino voltou atrás. Assad virou um aliado da resistência, mesmo que moderado.
A LIT-QI, porém, segue com sua peça de propaganda que parece ter sido feita pelo Mossad: “Eles explicaram que esse bombardeio generalizado não se deu apenas por questões militares, mas principalmente porque Assad olhava para o futuro e decidiu expulsar toda a população palestina para abrir espaço para que o bairro passasse a ser habitado pelas famílias dos milicianos que vieram de outros países para apoiá-lo”. Por que Assad colocaria os mercenários armados em uma grande favela de palestinos que também estão armados? Não faz o mínimo sentido. É pura propaganda e fica ainda pior.
O texto não denuncia que os mercenários foram financiados pelo imperialismo, ou seja, pelo governo atual. Esses sim tomaram controle de cidades inteiras e realizaram a limpeza étnica de diversas minorias. O fato de a LIT-QI não ver a Al-Qaeda nas ruas da Síria relembra quando o PTSU foi para a Ucrânia e não viu os nazistas. É algo quase inexplicável. Os relatos da imprensa burguesa são obrigados a mostrar os combatentes do Estado Islâmico, pois sua presença é generalizada nas ruas.
Ou seja, a LIT-QI é um grupo de papagaios do imperialismo. Atacam Assad, em uma frente com os EUA e “Israel”, mas quase não comentam sobre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, que estão no governo apoiados pelos EUA.
Eles seguem tentando afirmar que a Síria de Assad não se opunha a “Israel”: “também é importante lembrar que a Síria tem uma parte de seu território ocupada pelo Estado de Israel desde 1967. Durante 50 anos, Assad não permitiu que ninguém atirasse sequer uma pedra contra os soldados israelenses que ocupam o território sírio”. Isso é uma tese absurda. O governo do pai de Assad foi o grande inimigo de “Israel” por décadas. Ele entrou em guerra com os sionistas quando eles invadiram o Líbano. Depois, foi crucial para armar o Hesbolá e a própria Resistência Palestina. “Israel” lutou por 50 anos para derrubar Assad, até finalmente conseguir.
Não há como afirmar que ele não era um entrave para “Israel”. Para deixar a situação ainda mais clara, quando Assad caiu, “Israel” imediatamente invadiu a Síria e destruiu quase todo o equipamento pesado do exército. Ou seja, Assad era um entrave para os sionistas invadirem e enfraquecerem a nação árabe.
Para não ficar muito feio o apoio ao golpe de Estado, o texto tece algumas críticas ao novo governo:
“Esse governo quer reconstruir uma economia capitalista integrada aos mercados mundiais. E, para isso, se aproximou de todos os países imperialistas: os Estados Unidos, os europeus, a Rússia e a China, e também de potências regionais, principalmente a Turquia e a Arábia Saudita. No entanto, esta política será um obstáculo para garantir uma melhoria de vida para a população.
O governo de transição também quer reconstruir o Estado burguês, principalmente as forças armadas, que foram destruídas pela revolução, e também um regime bonapartista, ou seja, um regime que governa apoiado no exército. Além disso, querem escrever a constituição sem participação popular e convocar eleições daqui a quatro anos.”
A tese deles sobre o imperialismo russo e chinês é ridícula. Os povos do Oriente Médio veem esses dois países como grandes aliados – o que de fato são – para derrotar os norte-americanos, que ocupam o território com dezenas de milhares de tropas. A Turquia e a Arábia Saudita, de fato, participaram do golpe, mas sua relevância é muito pequena em comparação com a ação dos EUA, o maior inimigo de todos os povos do mundo. Esconder que isso foi uma vitória dos EUA é mais uma forma de ocultar como essa política é reacionária.
Por fim, ele fala do Estado burguês. É curioso que uma “revolução popular” queira fazer um governo capitalista tão neoliberal. Nos movimentos populares reais das décadas de 1950, 60 e 70, os próprios nacionalistas tinham que se apresentar como socialistas árabes. Agora, nessa suposta revolução, não há nenhum indício de política de esquerda. Durante a Revolução do Irã, o aiatolá chamou os trabalhadores a lutarem de armas na mão contra as forças da ditadura; nada parecido acontece na Síria.
A realidade é que um golpe de Estado ultrarreacionário tomou o governo da Síria. A única coisa positiva nisso é que o governo golpista assumiu em meio a uma enorme crise e tem dificuldade para controlar o país. Fora isso, a Síria sofreu a maior derrota dos povos oprimidos em 2024. Um grupo de esquerda apoiar isso é um atestado de suicídio político.