Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

A literatura infantil de Graciliano Ramos

Menos conhecidos são os trabalhos de literatura infantil do nosso escritor

O escritor alagoano Graciliano Ramos é reconhecido por uma literatura que se situa no campo do modernismo, já em sua segunda fase. Junto com outros escritores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Amando Fontes e Jorge Amado, desenvolveu uma arte de tipo regionalista, descrevendo tipos e pessoas dos extratos mais baixos da sociedade, sem com isso cair em caricaturas, ou estereótipos superficiais.

Estes escritores foram, neste sentido, muito além da literatura naturalista do século XIX que, se por um lado, foram pioneiros em chamar a atenção e dar protagonismo a personagens oriundos do povo, faziam-no não sem uma certa superficialidade, chegando a definir as personalidades como que condicionadas ao meio social, dentro da perspectiva do determinismo, ou como que determinadas pela raça, sob a influência do darwinismo e o pensamento cientificista típico do período.

A perspectiva de Graciliano Ramos e dos demais escritores de sua geração é completamente diferente. Naqueles escritores modernistas, as personagens populares aparecem com suas contradições humanas, suscitam sentimentos e ações que não se explicam apenas pela pobreza do meio ou da raça, os seus atos e palavras não se encerram em lógicas binárias de bem ou mal, certo ou errado, heróis e vilãos.

Talvez apenas Jorge Amado, na primeira fase de sua produção literária, chegaria mesmo a dar um colorido de heroísmos aos tipos populares, como nos camponeses dos campos de cacau (“Cacau” – 1933) e nos menores infratores da lei no seu famoso “Capitães de Areia” de 1937.

No que se refere a Graciliano Ramos, ficaram na memória dos seus leitores a saga da família retirante de uma seca no sertão nordestino, quando a bestialização dos seres humanos, que se comunicam com grunhidos e interjeições, convive com a humanização da natureza, nitidamente da cachorra, ironicamente designada de Baleia.

A seca e a transitoriedade da vida humana surgem como uma fatalidade, ainda que a arbitrariedade do soldado amarelo que agride e prende Fabiano sugira que as coisas não necessariamente deveriam ocorrer da forma como ocorrem.

Além dos seu “Vidas Secas” (1938), livros como “São Bernardo” (1934) e “Angústia” (1936) certamente são o que há de melhor em todo a história da literatura em língua portuguesa.

Menos conhecidos são os trabalhos de literatura infantil do nosso escritor. No caso de “Alexandre e Outros Heróis” (1940) e “A Terra dos Meninos Pelados” (1937) descobrimos um tipo de literatura diferente dos romances de adulto supracitados. O realismo da literatura de adulto se confunde com o fantástico, com o pensamento lúdico da criança.

Alexandre é um típico contador de histórias dos tempos passados. A sua apresentação é feita logo na introdução:

“No Sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava”.

Ainda na introdução, o escritor alerta que as histórias de Alexandre não são originais, mas pertencem ao folclore do Nordeste, sendo possível que algumas tenham sido escritas.

Em que pese o contador de história jurar que os eventos narrados são reais, aconteceram de fato, são-nos narrados a história de um papagaio inteligente que defende presos no tribunal, de uma cachorra “moqueca” que fazia compras na feira para o seu dono, identificando e protestando com latidos a entrega de uma nota falsa, histórias de Alexandre montado numa onça que confundira cm cavalo. Há um aspecto de folclórico nas histórias, animais de roça como a cobra e a onça, que frequentemente despertam o medo na imaginação dos camponeses, aparecem em situações inusitadas.

As histórias populares são contadas aos mesmos ouvintes. O cego preto Firmino é incrédulo e questiona detalhes da narrativa de Alexandre, sem, contudo, lograr identificar inequivocamente a falsificação. O mestre Gaudêncio é curandeiro e Libório é cantador de emboadas, desejoso de transformar em música as histórias de Alexandre. Das Dores é afilhada do contador de história e benzedeira de mal olhado. Finalmente, Cesária é a mulher de Alexandre, ratifica e confirma as narrativas do marido ajudando com datas e números. Os ouvintes das histórias são pessoas tão despojadas como Alexandre. Este, por sua vez, cria por sua cabeça um mundo imaginário que compensa a sua penúria.

A “Terra dos Meninos Pelados” também é uma narrativa fantástica, desta vez não oriunda da imaginação de um velho contador de histórias, mas da mente lúdica de uma criança.

Raimundo era careca, tinha um olho azul e outro preto. Cansado da mangação das outras crianças, ingressa mundo mágico em que um carro, quando parecia ir atropelá-lo, para o movimento e explica à criança que naquelas bandas ninguém se machuca. Uma laranjeira gigante é capaz de falar e dá uma laranja à criança. O rio fecha a si mesmo, juntando as suas margens, para facilitar a travessia dos passantes. Finalmente, Raimundo se depara com um mundaréu de crianças que, como ele, são carecas, cada uma com um olho de cor diferente. É interessante observar que mesmo no mundo imaginário da terra dos meninos pelados, há um menino anão que também é objeto de mangação pelas demais crianças – mesmo no mundo da fantasia, existem as dificuldades do mundo real.

Se em Alexandre, o real se sobrepõe ao imaginário com a morte do contador de histórias (“não reparem na falta não meus amigos. Vou dormir.”), também no conto dos meninos pelados, Raimundo termina tendo que sair do mundo fantástico ao mundo real:

“Raimundo começou a descer a serra de Taquariu. A ladeira se aplanava. E quando ele passava, tornava a inclinar-se. Caminhou muito, olhou para trás e não enxergou os meninos que tinham ficado lá em cima. Ia tão distraído, com tanta pena, que não viu a laranjeira no meio da estrada. A laranjeira se afastou, deixou passagem livre e guardou silêncio para não interromper os pensamentos dele.

Agora Raimundo estava no morro conhecido, perto de casa. Foi-se chegando muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim e pisou na calçada.

As cigarras chiavam entre as folhas das árvores. E as crianças que embirravam como ele brincavam na rua”.

Bibliografia

RAMOS, Graciliano. “Alexandre e Outros Heróis”. Ed. Martins Editora.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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