Judiciário

A Justiça não é cega, tampouco justa

Política se faz com princípios, não com bordões de ocasião

Justiça "cega"

A matéria publicada por Elisabeth Lopes no sítio Brasil247, na última semana, parte da famosa frase do ministro Alexandre de Moraes, “a Justiça é cega, mas não é tola”, para defender rigorosamente a decisão que determinou a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro. No entanto, com uma leitura que não precisa necessariamente ser muito atenta, é possível identificar diversas passagens do texto que, no melhor dos casos, trazem dilemas centrais sobre o funcionamento atual das instituições burguesas no Brasil, quando não há apenas um problema central em toda a abordagem política e jurídica da situação atual.

O artigo utiliza a frase de Moraes como justificativa de “firmeza” institucional diante do “reiterado descumprimento das medidas cautelares” por parte de Bolsonaro. O problema aqui começa, além do discurso inteiramente direitista em si, no fato disso sequer ser algo político, mas apenas um bordão judicial que acena para uma parcela iludida da população por parte da burguesia. O próprio texto de Elisabeth cita que “algumas dessas restrições foram atenuadas ao longo da semana”, com liberação de visitas de familiares e aliados. Ora, se há reiterado descumprimento, por que atenuar restrições? Não parece haver, portanto, uma lógica coerente entre discurso e prática no próprio texto – ora se endurece, ora se flexibiliza, segundo conveniências político-institucionais.

Ao decorrer do texto, diversos trechos classificam o bolsonarismo como “extrema direita de viés fascista, sem limites e vocacionalmente delituosa”, como de praxe da esquerda pequeno-burguesa. Ao mesmo tempo, são citados exemplos de “espetáculo trágico patético de desrespeito às instituições democráticas”, como manifestações com a bandeira dos EUA ou ataques à Suprema Corte. Nessa narrativa, todo o campo adversário é resumido a uma caricatura do mau absoluto, sem qualquer nuance ou distinção. Não há uma menção sequer à burguesia que, de fato, golpeou o País em 2016, retirando Dilma Roussef da presidência e Lula das eleições. Neste caso, a defesa é a criminalização da oposição, ignorando que tal justificativa pode ser utilizada para justificar qualquer ação draconiana do Estado – inclusive o uso, por parte do STF, de mecanismos como censura prévia e processos de exceção. Combater a “extrema direita” não deveria significar abdicar dos direitos democráticos básicos, como o devido processo legal e a liberdade de expressão, ainda mais quando tais poderes de censura seguem na mão do aparato mais profundo da burguesia.

A autora exalta Moraes e o STF como baluartes contra o retrocesso democrático, destacando que “a Justiça mostra que seguirá de pé — firme e atenta — diante de qualquer tentativa de golpe”. Entretanto, ignorando o fato de que tal ficção é digna de livros de romance, a autora esquece, ou ignora, que a atuação do STF sequer é essa e dos limites da Justiça constitucional, assumindo, em vários momentos, papel central na cena política mediante decisões de natureza nitidamente política. O uso recorrente do inquérito das “fake news”, a censura de partidos e veículos de imprensa, e a perseguição a críticos (inclusive de esquerda) revelam um tribunal que não se limita à constitucionalidade, mas age como protagonista da conjuntura.

A narrativa da matéria sugere um complô externo: transferências financeiras à família Bolsonaro e apoio do governo Trump para pressionar as instituições brasileiras. E, uma vez mais, a matéria abdica de qualquer prova concreta, mas utiliza a gravidade da imputação como justificativa para dureza contra o réu, quem quer que seja. Não há espaço para o contraditório ou para o exame crítico das provas, mas sim para a afirmação de que tudo se resolve pela gravidade do contexto. Esse tipo de abordagem é, no mínimo, perigoso: pode tornar-se justificativa para repressão indiscriminada a qualquer opositor que seja conveniente aos interesses do momento. Novamente vale o destaque: o poder está sendo dado para a burguesia, não para organizações democráticas ou populares.

Segundo com o artigo, a senhora Elizabeth pontua que “não se trata de perseguição política, mas do funcionamento do Estado Democrático de Direito”. Ela trata a decisão como “pedagógica” e “forte”, para mostrar que “mesmo um ex-presidente fascista não está acima da lei”. Contudo, omite que o mesmo STF já foi acusado por organizações internacionais de violar liberdades civis ao adotar medidas excepcionais contra adversários políticos inclusive de esquerda, como quando chancelaram a prisão ilegal do ex-presidente Lula, o impediram de ver o velório de seu neto e de se despedir de seu irmão. O direito à defesa, o contraditório e a presunção de inocência são relativizados em nome de causas maiores. É um verdadeiro espetáculo de, no melhor dos casos, ingenuidade.

Seguindo, ao denunciar a “manipulação da imprensa tradicional”, Elisabeth acaba legitimando a atuação dos veículos que, em conjunturas passadas, atacaram sistematicamente a esquerda e os movimentos populares, quando não o fazem até hoje. A crítica à imprensa só parece válida quando é dirigida contra o adversário de ocasião. O resultado é a institucionalização de um falso consenso, onde divergências legítimas tornam-se “ataques à democracia”.

Uma vez mais, tal qual um papagaio de Moraes, repete que a justiça não é tola e que “um réu não a fará ser”. Este trecho e seu uso reiterado demonstra, na prática, uma Justiça que se afirma não pela equidade, mas pelo exercício do poder. Em vez de garantir direitos para todos, inclusive para adversários, adota postura punitiva conforme orientação do momento. Qual o limite da atuação “inteligente” da Justiça e onde começa o arbítrio da toga? O artigo não responde. Trata de reforçar a necessidade de punição dura, sem ponderar que, amanhã, esse mesmo aparato pode se voltar contra outros campos políticos.

O “combate ao bolsonarismo” não pode justificar a suspensão de direitos fundamentais, a adoção de medidas excepcionais e o atropelo do devido processo legal. Democracia se faz com princípios sólidos, não com bordões de ocasião.

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