Professor de ciência política na Universidade de Middlesex, no Reino Unido, Francisco Dominguez publicou um artigo reproduzido pelo portal Brasil 247 e intitulado Bolívia: Cisão sem princípios na esquerda causa debacle eleitoral, trazendo uma interpretação cínica para o desfecho das eleições bolivianas, como indicado pelo título. Para o acadêmico, a vitória eleitoral da direita teria sido uma derrota “autoinfligida” pela esquerda e serviu para “conceder à poderosa oligarquia boliviana um contexto auspicioso para desmantelar o Estado Plurinacional”. Diz Dominguez:
“O candidato de esquerda com mais votos foi Andrónico Rodríguez (AP, Aliança Popular), que rompeu com o próprio grupo dissidente de Evo Morales; ele obteve míseros 7,76%. Foi seguido por Eduardo del Castillo, candidato do governo Arce, que obteve um humilhante 3,18%. Morales, que foi impedido de ser candidato, pediu que as pessoas anulassem seus votos, o que representou 19% do total.”
É curioso que o próprio acadêmico pequeno-burguês reconheça que “Morales foi impedido de ser candidato”, mas trate esse episódio como um fenômeno secundário. Ocorre que não é.
Em condições normais, um candidato ser arbitrariamente retirado de uma disputa eleitoral já é, em si, um demonstrativo de que a eleição em questão é tudo menos honesta, porém no caso boliviano é ainda pior. A pessoa tirada da disputa eleitoral, no entanto, não foi qualquer um, mas o principal líder popular da Bolívia, o que para um leitor minimamente atento ficaria demonstrado quando o próprio autor destaca que “Morales pediu que as pessoas anulassem seus votos, o que representou 19% do total”, número praticamente o dobro da soma dos votos dos demais candidatos juntos. Aqui, já se destaca o fato de que não houve uma “cisão sem princípios”, mas o autor continua:
“Em outubro de 2023, Morales foi proclamado o ‘único candidato presidencial’ para a eleição de 2025 e líder do partido por um congresso nacional do MAS altamente duvidoso. O congresso foi marcado por expulsões e pela não participação de Arce e do vice-presidente da Bolívia, David Choquehuanca. Muitos indivíduos e organizações de massa filiadas ao MAS questionaram o congresso e a validade de suas decisões, declarando-o ilegal. Morales respondeu dizendo que lideraria a recuperação ‘da revolução e salvaria a nação novamente’.
O Tribunal Supremo Eleitoral não reconheceu o congresso, decidiu que o MAS deveria realizar outro congresso para eleger seu comitê nacional e desqualificou Morales de ser candidato. Dali em diante, tudo foi ladeira abaixo.”
O desatento autor fala em “indivíduos e organizações”, mas cita nominalmente apenas o presidente Luis Arce, o vice-presidente Choquehuanca e o Tribunal Supremo Eleitoral. Parece não perceber como entregou a rapadura, mas se a burocracia judicial que participou do golpe de Estado de 2016, responsável por derrubar Morales, estava junto de Arce e o desfecho do caso foi o partido aceitando a intervenção judicial, o que tivemos concretamente foi um novo golpe de Estado, primeiro no MAS, que foi dominado por golpistas, e depois no país, que não pode escolher livremente seu governo.
Trata-se, portanto, de uma conjuntura em que a verdadeira cisão na esquerda não se deu por caprichos, mas pelo deslocamento dos setores pequeno-burgueses do MAS ao imperialismo. A posição correta da esquerda diante do caso boliviano deve ser denunciar a infiltração de agentes da direita nas fileiras do campo e combater esses elementos energicamente. Não, no entanto, o que Dominguez propõe.
O autor não se rebaixa a dizer abertamente que Morales deveria capitular e apoiar a direita, mas deixa claro que defende exatamente isso: que a esquerda do MAS simplesmente abandonasse as bases sociais do partido e apoiasse um governo reconhecido pelo autor como neoliberal. Tudo isso a título de uma vitória que teria sabe-se lá qual valor, uma vez que a impopularidade de Arce já atingiu níveis elevados o bastante para que o próprio mandatário desistisse de buscar a reeleição e fracassasse miseravelmente na tentativa de emplacar um sucessor.
Dado esse quadro, o que Dominguez concretamente defende é que a esquerda seja usada como ponta de lança do imperialismo para a política de devastação total dos países alvejados. Isso serve para a Bolívia e também para o Brasil.
O que foi derrotado nas eleições presidenciais bolivianas foi a manobra dos monopólios, de usar a esquerda. Se Morales e a esquerda boliviana conseguirão capitalizar a desmoralização do novo governo eleito junto aos trabalhadores precisará ser observado, mas o fato é que a manobra do ex-presidente foi uma vitória, ainda que Dominguez trate a conquista do cargo presidencial como um prêmio importante o bastante para justificar qualquer loucura, inclusive apoiar o imperialismo para impedir a aplicação do programa do imperialismo.




