Coluna

A denúncia contra Bolsonaro e contradições da democracia liberal

"Ao que parece, trata-se apenas de uma opção política denunciar Bolsonaro e os membros de seu governo que cogitaram a sua permanência no poder"

Na última terça-feira, o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, ofereceu uma denúncia perante o Supremo Tribunal Federal contra Jair Bolsonaro e mais 33 acusados, ex-membros dos altos escalões de seu governo. A imprensa comemorou a imputação dos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. O marco temporal, segundo a denúncia, é o discurso de Bolsonaro no dia 7 de setembro de 2021 e, a partir daí, seguiram-se pronunciamentos, lives, publicações em redes sociais e reuniões que culminaram nos atos do dia 8 de janeiro de 2023.

A denúncia relata que “a organização criminosa constituída desde pelo menos o dia 29 de junho de 2021 e operando até o dia 8 de janeiro de 2023, com o emprego de armas (art. 2º da Lei n. 12.850/2013). Essa organização utilizou violência e grave ameaça com o objetivo de impedir o regular funcionamento dos Poderes da República (art. 359-L do Código Penal) e depor um governo legitimamente eleito (art. 359-M do Código Penal). A organização também concorreu, em 8.1.2023, na Praça dos Três Poderes, em Brasília/DF, mediante auxílio moral e material, para a destruição, inutilização e deterioração de patrimônio da União, em investida ocorrida contra as sedes do Congresso Nacional e do emprego de substância inflamável, gerando prejuízo considerável para a União” [grifos nossos].

A grande maioria das condutas descritas, as quais ensejaram a imputação pelo PGR e estão relatadas nas 272 páginas do documento, são públicas e foram amplamente divulgadas pela mídia. Acrescentaram-se, no entanto, documentos, minutas, atas de reuniões secretas relatados pelos delatores e atuações em redes sociais para “pressionar” os militares que resistiram em aderir ao intuito dos denunciados. A denúncia não relata nenhuma evidência de violência ou grave ameaça, nem qualquer atuação capaz de consumar os delitos imputados, exceto aqueles perpetrados no dia 8 de janeiro.

Entre os juristas, a discussão paira sobre o fato de os crimes terem como núcleo do tipo o verbo “tentar”, o que, tecnicamente, implica na ideia de que a consumação se exaure na própria tentativa. É bom esclarecer que, segundo a dogmática jurídico-penal, o crime tem um “iter”, ou seja, consiste em uma série de condutas realizadas para fins de consumá-lo. Os atos preparatórios são, no entanto, impuníveis. Há quem defenda que estejam provados atos executórios, mas é difícil sustentar essa tese baseando-se apenas em atas de reuniões secretas relatadas pelos delatores e alguns documentos encontrados pela investigação policial.

Com efeito, a denúncia mais parece um compilado de fatos e atos públicos, ilustrados por prints de conversas privadas, grupos de WhatsApp e lives do ex-presidente. Ademais, a PGR tomou o cuidado de, logo no início, ressaltar o fato de que os comandantes das Forças Armadas não aceitaram os “convites” para perpetrar o “golpe”. Segundo essa linha de pensamento, isso já basta para configurar a tentativa, ou seja, já caracteriza a vontade livre e consciente de praticar o verbo núcleo do tipo “tentar impedir o regular funcionamento dos Poderes” e “tentar depor governo legitimamente eleito”. Só não restaram evidenciados na denúncia os elementos “violência e grave ameaça”.

Crimes contra a democracia

Esses tipos penais foram introduzidos no Código Penal pelo próprio Bolsonaro, quando ainda era presidente. Pelo seu caráter aberto, o que viola a estrita legalidade penal, eles evidenciam a mens legis (vontade da lei): responsabilizar criminalmente movimentos sociais contrários ao regime democrático, seja lá o que isso concretamente signifique. Democracia é um conceito juridicamente indeterminado, de conteúdo estritamente político. O bem jurídico tutelado é, portanto, o regime democrático e suas instituições, o que torna potencialmente criminosas quaisquer condutas que ponham à prova ou questionem a ordem estabelecida. Atuar contra as instituições liberais, na tentativa de romper o regime, neste sentido, é crime, portanto. Ora, quaisquer movimentos revolucionários podem ser acusados de tentar impedir o regular funcionamento dos Poderes ou de tentar depor governo legitimamente eleito! Distribuir panfletos, persuadir os trabalhadores a depor o governo, por exemplo, pode ser considerado crime, exceto por seus elementos fundamentais e indispensáveis: a violência e grave ameaça. Em sentido estritamente jurídico, o que só é concebível abstratamente, pode-se subsumir esses tipos penais a quaisquer movimentos revolucionários que pratiquem atos violentos ou potencialmente ameaçadores ao regime democrático. Sem os elementos “violência e/ou grave ameaça”, não há como imputar a responsabilidade penal para pessoas ou coletivos que tenham o intuito de romper com a ordem estabelecida.

Ao que parece, trata-se apenas de uma opção política denunciar Bolsonaro e os membros de seu governo que cogitaram a sua permanência no poder. As condutas descritas na denúncia são gravíssimas, não por atentarem contra o regime democrático liberal e suas instituições, mas sim por exporem suas fragilidades. É perfeitamente possível, como se viu e, também, como foi descrito na peça, usar as instituições para fomentar o ódio, a desconfiança e a desobediência civil, invocando a própria democracia e utilizando-se de mecanismos previstos na própria Constituição para desestabilizar o regime e se manter no poder com apoio popular.

Política e Direito

Optar por tratar na esfera penal de modo genérico e abstrato, englobando condutas que poderiam ser tipificadas de modo individualizado, pode ser um tiro que sairá pela culatra. Os princípios e garantias penais decorrentes do que se chama garantismo penal foram alijados deste episódio: a esfera penal deve ser a última razão do Estado; os tipos penais devem observar apenas a estrita legalidade; o legislador penal não está autorizado a criar tipos que contenham elementos indeterminados nem que alcancem condutas variadas e indeterminadas, justamente para evitar que sejam imputadas ao sabor do momento. Pelo menos, é isto que está nos livros de Direito Penal. Desprezar as garantias sempre fragiliza o sistema. Se a ideia é defender a democracia, que é um regime político, por meio de formulações jurídicas genéricas, é ela mesma, a democracia constitucional, que segue afrontada, fragilizada e debilitada neste cenário político, cujo espetáculo está longe do seu fim.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.