No dia oito deste mês, o advogado Lenio Luiz Streck publicou um texto no jornal O Globo sob o título de “Por que anistia para golpistas é inconstitucional” no qual, basicamente, defende que há inconstitucionalidade na anistia mesmo que não haja nada a respeito na Constituição do Brasil.
Logo no primeiro parágrafo do texto, o advogado tenta responder a pergunta que dá nome à matéria:
“A resposta é afirmativa. Por vários motivos. Em primeiro lugar, há que rejeitar argumentos (existem muitos divulgados na mídia) de que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição Federal (CF) não a proíbe. Esse parece ser o principal argumento a favor da tese da anistia. Trata-se de uma tese que no Direito chamamos de textualista, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”. Isso quer dizer que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não disser algo sobre o tema, poderia aprovar qualquer tipo de lei. Ora, pensar assim é fazer pouco-caso da Constituição. É pensar que a CF é uma espécie de simples código.”
Basicamente, o advogado acredita que algo possa ser proibido, ou não, sem constar nas leis do País. Para ele, há leis que não poderiam ser aprovadas pelo congresso, por exemplo, mesmo que não haja nenhuma proibição na Constituição para esta lei em específico. É uma defesa completa do arbítrio jurídico, em que o judiciário pode fazer tudo o que quiser, já que não depende do conjunto das leis do País para estabelecer seu julgamento. É como se existisse a Constituição, mas o que vale mesmo são regras que correm por fora, o que por si só já demonstra que a tese é inconstitucional.
O próprio texto de Streck se contradiz, já que ele mesmo afirma, em relação à anistia “Constituição Federal (CF) não a proíbe”. Depois, o texto passa a dizer que não há nada escrito na Constituição sobre a proibição, o que, basicamente, acaba por dar na mesma, mas, segundo a tese do advogado, não é necessário que esteja escrito para que seja proibido.
Vejamos como Streck contrapõe o argumento acima:
“Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia aos golpistas — por certo responderia que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque. Essa é a melhor maneira de saber o conceito de “interpretação textualista”.”
A ideia é completamente aberrante. Se o desejo de uma lei fosse proibir qualquer animal de entrar em determinado lugar, ou, como depois Streck argumenta, proibir qualquer “animal perigoso”, por que é que escreveriam somente que a proibição é para cachorros? Não seria mais fácil já colocar direto a proibição para todos os animais?
É claro que qualquer tipo de proibição deve ser precisa, para que não haja diferentes interpretações e para que os cidadãos saibam o que é proibido. Caso o contrário, como dissemos anteriormente, reina o arbítrio, ou seja, vai da cabeça do juiz a proibição.
Imaginemos a seguinte situação, levando em conta o exemplo tosco do cachorro no parque: um belo dia, um inimigo declarado de alguém importante resolve levar seu gato no parque. Seu desafeto, um juiz, decide que o cidadão deve ser preso por desobedecer a lei de que não podemos levar cachorros no parque.
Alguém pode se perguntar “mas não se tratava de um gato?” ou “mas o gato é inofensivo, não é perigoso como um cachorro.”.
No entanto, diferente do que fica implícito para Lenio Streck (que o cachorro é um animal perigoso e que, portanto, a lei que impediria a entrada de cachorros se aplicaria a todos os animais perigosos), para o juiz do caso, desafeto do dono do gato, o que vale é que o cachorro é um animal mamífero e, logo, fica implícito que todos os mamíferos são proibidos no parque.
Antes que alguém diga que um cidadão não poderia ser julgado por um inimigo seu, fica evidente que agora, no Brasil, essa proibição não é para valer, vide o caso de Bolsonaro sendo julgado por Alexandre de Moraes no STF.
O texto continua:
“Em segundo lugar, temos o precedente Daniel Silveira. Não era proibido expressamente pela Constituição que o presidente Jair Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição. Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas.”
Novamente, Streck quer convencer a todos de que mesmo sem constar na Constituição, o indulto não era permitido pela Constituição.
Sobre Daniel Silveira, ele continua:
“Há uma passagem em que se lê:
— Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no art. 60 da CF.”
No entanto, o artigo da Constituição em questão fala somente das possíveis emendas que podem ser feitas a ela, o que, apesar de não ter nada a ver com o assunto do indulto vem bem a calhar, já que o que está em jogo quando se diz que a anistia aos presos do 8 de janeiro ou o indulto a Daniel Silveira não é a constitucionalidade em si, mas sim, a possibilidade de legislar por parte do STF.
O que Lenio defende em seu texto é que o STF possa legislar, já que o órgão poderia criar leis sem obedecer à Constituição, o que, novamente, é inconstitucional. Segundo o texto (mas é claro, para Lenio Streck, não seria necessário seguir o texto), somente poderia modificar a Constituição com uma emenda proposta pelo Presidente da República, mais da metade das Assembleias Legislativas dos estados, compostas pelas maiorias de seus deputados ou um terço da Câmara Federal ou do Senado.
Só isso já seria o suficiente para provar que, qualquer proibição que não consta na Constituição, não pode ser constitucional, já que, qualquer mera modificação no texto precisaria passar pelo que foi dito acima. Imagine, então, que o STF tenha o poder de impedir o congresso de passar uma lei, sem que haja impedimento nenhum na Constituição e, sendo que o judiciário não tem sequer o poder de modificar o texto.
Lenio então passa a falar daquilo que estaria implícito, mesmo que não estivesse na lei, como quando os padres dizem aos fiéis que todos sabem o que é o pecado, independente de ter lido em algum lugar ou ter escutado em uma missa. É a palavra de Deus que determina o que é lei e todos os religiosos sabem por influência do Espírito Santos:
“Isso é o que se chama “proibição implícita”. Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei.”
Na sequência, o mais bizarro de todo o texto. É proibida a anistia pois, na Argentina, a doutrina dos tribunais disse que é proibido:
“Que é proibido anistiar a quem comete crime de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos tribunais e pela doutrina (Bidart Campos). Por aqui, setores do Direito tentam aplicar uma espécie de “textualismo seletivo”.”
Ou seja, a Argentina da ditadura fascista de Javier Milei é não só o exemplo, mas aquilo que é decidido por lá, mesmo que também não constando na constituição argentina, é parte da doutrina que deve ser aplicada no Brasil.
Se pensarmos bem, como o judiciário da Argentina é controlado pelo “Deus” norte-americano do imperialismo, e como o judiciário brasileiro também o é, faz sentido que uma decisão com base no que é “implícito” por lá, seja aplicada aqui também. Só não faz sentido de acordo com as leis brasileiras, nem com o fato de que são dois Estados diferentes, com organizações políticas e, sobretudo, constituições diferentes, mas, se ater a isso seria “textualismo”.
O texto segue e Streck cita outro ser que age como Deus:
“Ainda sobre o “precedente Daniel Silveira”, consta no acórdão, no voto do ministro Alexandre de Moraes:
— Seria possível o STF aceitar indulto coletivo para todos aqueles que eventualmente vierem a ser condenados pelos atos de 8 de janeiro, atentados contra a própria democracia, contra a própria Constituição?
E a resposta:
— Obviamente que não. Isso está implícito na Constituição.”
Alexandre de Moraes diz que está “implícito” na Constituição, pois, o que ele pensa, é lei. Só não está escrito e, bem ou mal, aqueles que escreveram a Constituição com voto popular no fim da ditadura decidiram não colocar nenhuma observação do tipo.
É interessante também como a fala de Alexandre de Moraes é contra o “indulto coletivo” por estar implícito para ele que a Constituição é contra. No entanto, aquilo que não está implícito, mas está escrito, ele não segue.
No Art. 5º, inciso XLV, da CF/88:
“Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.”
Ou seja, indulto coletivo não por Alexandre acreditar que não, mas, a punição coletiva, expressamente proibida, pode e Xandão a usou para condenar, por exemplo, Débora Rodrigues dos Santos por crimes que não cometeu, mas que, por estar no mesmo ambiente que quem vandalizou os prédios da Praça dos Três Poderes, foi condenada a 17 anos de cadeia.
E Lenio segue com a ideia de que a palavra dos ministros do STF são mais a Constituição do que o próprio texto:
“Aliás, no caso Silveira, o STF usa mais de 40 vezes a tese de que há vedações implícitas na Constituição ao direito de anistia e indulto.”
Essa citação é praticamente orweliana, como quando se diz que uma mentira contada muitas vezes se transforma numa verdade.
Por fim, a parte final do texto:
“No nosso exemplo, parece óbvio que, proibidos cães, ursos não são permitidos. E por quê? Porque onde está escrito cães, leia-se “animais perigosos”.”
Então, porque não está escrito “animais perigosos”?
“E onde está escrito democracia e Estado Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra si mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem atenta contra o Estado Democrático. Tudo porque a Constituição não é um oximoro. Não dá para “contentar-se de contentamento”. Na poesia, dá; no Direito, não!”
Na realidade é “contentar-se de contente”. Perdão pelo textualismo. E o que Streck afirma é uma aberração jurídica. Transportada para a ditadura de 64, inclusive, é o mesmo argumento que era utilizado pelos militares contra os opositores políticos. Caso levássemos a sério o que Streck diz, o Brasil seria como o Chile, um país em que os perseguidos pela justiça da ditadura vivem no exílio até hoje, pois nunca houve anistia.
Um dos motivos centrais, inclusive, para o fim da ditadura, foi justamente o movimento por uma anistia para que a vida política do Brasil voltasse a ser ativa e, perto dos bolsonaristas do 8 de janeiro, que somente vandalizaram prédios públicos, muitos militantes da esquerda que foram exilados pela ditadura cometeram atos piores aos olhos da justiça burguesa atual.
Por exemplo, Dilma Rousseff pegou em armas contra a ditadura militar, o que é extremamente louvável, mas, para o judiciário de hoje, seria passível de décadas na cadeia.
Não é democrático impedir a anistia de pessoas que sequer cometeram algum crime segundo a Constituição. Sim, porque, segundo o que está escrito na Constituição, goste Lenio Streck ou não, é: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”.