O crescimento de uma nova extrema direita, que conseguiu a mais importante vitória eleitoral do planeta (a da eleição presidencial dos EUA, com Donald Trump), reviveu uma antiga tese que já levou a gigantescas derrotas da esquerda: a luta da democracia contra o fascismo. É por meio desta política que a esquerda em quase todo o mundo está sendo cooptada a apoiar os maiores inimigos dos trabalhadores, o imperialismo.
Há 90 anos, porém, Leon Trótski, segundo mais importante líder da Revolução Russa, já havia desbancado essa teoria completamente. Antes de comentar a política de Trótski, vale uma breve explicação sobre a conjuntura atual e também a da década de 1930.
O capitalismo atual é dominado pelo imperialismo “democrático”. O que isso quer dizer? Não são os fascistas que controlam os governos dos EUA, da França, da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, os principais países imperialistas. São figuras que se dizem os grandes defensores da democracia, até 2024 as duas mais aparentes eram Biden e Macron.
Essas figuras que se dizem os “líderes do mundo livre” foram as mesmas que perpetraram o maior crime do século XXI, o genocídio na Faixa de Gaza. Eles sustentaram, e continuam sustentando, o Estado de “Israel” e todos os ataques ao Oriente Médio.
Foram eles também os responsáveis por golpes de Estado no mundo inteiro, os golpes da América Latina, incluindo o de 2016 no Brasil. Esse bloco do imperialismo “democrático” é, na verdade, o setor responsável pela opressão dos trabalhadores no mundo inteiro, e pelos maiores crimes do planeta, as guerras e genocídios estão todos em sua conta.
Já na década de 1930, houve o surgimento de um novo regime político nos países imperialistas que não tinham tanto controle mundial. Na Itália e na Alemanha, o fascismo tomou conta. No entanto, na prática, a situação não era tão diferente da atual.
Quem estava oprimindo o planeta inteiro naquele momento eram as duas grandes “democracias”: Inglaterra e França. Itália e Alemanha queriam ampliar a sua participação no controle mundial e assim lançaram uma guerra entre nações imperialistas. Essa luta pela dominação mundial é o caráter principal da guerra, mas os vencedores a divulgaram como a luta das democracias contra o fascismo.
Ou seja, já na década de 1930, os marxistas sabiam que essa falsa divisão de democracia contra o fascismo só poderia levar os trabalhadores a apoiarem o imperialismo. O imperialismo mais forte, que tinha mais controle do mundo.
Em 1938, na iminência da guerra, o jornalista Mateo Fossa entrevistou Leon Trótski, fazendo diversas perguntas justamente sobre esse tema. O fundador do Exército Vermelho, que liderava organizações marxistas no mundo inteiro, sabia o efeito nefasto que essa submissão à “democracia” fazia na esquerda.
O fenômeno que existia naquele momento era a Frente Popular, que hoje seria chamada de Frente Ampla, uma frente unificada da esquerda com os partidos ditos “democráticos”, ou seja, do imperialismo. Essa política foi responsável por estrangular completamente a esquerda na Espanha e na França.
Trótski comenta: “a política da Frente Popular, como demonstram os exemplos da Espanha, França e outros países, consiste em subordinar o proletariado à ala esquerda da burguesia. Todavia, toda a burguesia dos países capitalistas, tanto de direita como de ‘esquerda’, está impregnada de chauvinismo e de imperialismo. A ‘Frente Popular’ serve para transformar os operários em bucha de canhão para a sua burguesia imperialista. E para nada além disso”.
Esse é o aspecto central do problema. A Frente Popular, a aliança da esquerda com a “democracia”, transforma a esquerda em uma serviçal dessa “ala esquerda da burguesia”, a burguesia democrática.
A esquerda abandona sua política de lutar contra sua maior inimiga, para lutar contra os fascistas, em geral, mera expressão política da luta social. Os fascistas, na verdade, só se tornam os grandes inimigos quando são apoiados pelo imperialismo.
Hitler e Mussolini assumiram o poder com total apoio do imperialismo. Só depois que entraram em confronto com França e Inglaterra é que começou a “defesa da democracia”.
O golpe da democracia
Então o grande líder bolchevique faz uma explicação mais completa:
“A teoria falsa e completamente equivocada segundo a qual a próxima guerra será uma guerra entre o fascismo e a ‘democracia’. Nada é mais falso e mais estúpido do que essa ideia. As ‘democracias’ imperialistas estão divididas devido às contradições dos seus interesses em todo o mundo. A Itália fascista pode facilmente passar para o lado da Grã-Bretanha e da França se ela deixa de acreditar na vitória de Hitler. A Polônia semi-fascista pode unir-se a um outro lado, de acordo com as vantagens que lhe serão oferecidas. No transcorrer da guerra, a burguesia francesa pode substituir sua ‘democracia’ pelo fascismo para manter a submissão dos operários e obrigá-los a lutar ‘até o fim’.
A França fascista, assim como a França ‘democrática’, defenderá suas colônias com armas na mão. A nova guerra terá um caráter de rapina imperialista muito mais claro do que a de 1914-18. Os imperialistas não lutam por princípios políticos, mas por mercados, colônias, matérias-primas, pela hegemonia sobre o mundo e sobre suas riquezas.
A vitória de qualquer um dos campos imperialistas representaria a escravidão definitiva de toda a humanidade, o fortalecimento da submissão de colônias existentes, dos povos fracos e atrasados, entre eles os da América Latina. A vitória de qualquer um dos campos imperialistas representará a escravidão, a desgraça, a miséria, a decadência da cultura humana.”
A sua descrição não poderia ser mais precisa. O imperialismo da França, por exemplo, decidiu fazer um acordo com Hitler e entregou o país de bandeja para os nazistas, ou seja, uma adesão ao fascismo. No entanto, as colônias todas se mantiveram sobre a ditadura da gendarmeria francesa, que aprendeu novas táticas de opressão com os nazistas.
Quando a guerra acabou, o imperialismo democrático venceu. Qual foi a consequência disso? Os norte-americanos se tornaram o principal país do bloco imperialismo e impuseram ditaduras fascistas no mundo inteiro em um dos períodos mais brutais de violência e opressão da história da humanidade. Imediatamente após o fim da guerra começaram os golpes na América Latina, onde crescia o movimento nacionalista.
Leon Trótski ainda apresenta uma caracterização muito importante para os países oprimidos, citando o Brasil inclusive. Ele demonstra como a divisão “fascismo x democracia” levaria à esquerda a apoiar o imperialismo inglês, que era o principal opressor do Brasil até o fim da Segunda Guerra Mundial:
“Existe atualmente no Brasil um regime semi-fascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto, que amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que lado do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil ‘fascista’ contra a Inglaterra ‘democrática’. Por quê? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse, ela colocaria outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. É preciso não ter nada na cabeça para reduzir os antagonismos mundiais e os conflitos militares à luta entre o fascismo e a democracia. É preciso saber distinguir os exploradores, os escravagistas e os ladrões por trás de qualquer máscara que eles utilizem!”
Em 1938, quando Trótski deu a entrevista, Getúlio Vargas havia acabado de estabelecer o regime do Estado Novo, em suas próprias palavras um regime “semi-fascista”. Mas esse governo ditatorial seria motivo para a esquerda ficar contra a defesa do Brasil em caso de guerra? Obviamente que não. Essa colocação hipotética se tornou realidade quatro décadas depois.
Durante a ditadura militar sanguinária da Argentina houve uma guerra contra a Inglaterra para libertar as Ilhas Malvinas. Naquele momento os trabalhadores argentinos saíram em massa às ruas contra a Inglaterra.
Os setores da esquerda que ficaram ao lado dos ingleses se chocaram com a luta nacionalista. A esquerda que defendeu a vitória da Argentina na guerra se fortaleceu e assim fortaleceu a luta contra a própria ditadura militar.
Uma das implicações dessa teoria é que o caráter ideológico dos setores que lutam é totalmente secundário, o que importa são as classes em disputa. À luz dessa consideração, vale analisar como essa teoria afeta a política brasileira, onde três blocos principais atuam.
A esquerda, que tem como principal força o PT. O imperialismo, que controla a maior parte da imprensa, o STF, grande parte da cúpula das Forças Armadas, grande parte do Congresso, e que tinha como principal partido o PSDB, que agora se reagrupa em outros partidos.
Finalmente, temos a burguesia nacional, que luta tanto contra o imperialismo quanto contra os trabalhadores. Essa tem como principal expressão o bolsonarismo. Bolsonaro é apoiado pelos capitalistas nacionais como os donos de empresas como Havan, Localiza, Madero, etc.
Existe uma clara luta entre esses dois blocos da direita, o que aparece como a “democracia” contra o bolsonarismo. Nessa conjuntura, faz sentido a esquerda se aliar ao STF, à Rede Globo, ao Banco Itaú e aos demais “democratas”? A tradição marxista tem uma resposta clara para essa pergunta. O próprio Trótski responde: “a conclusão é que é impossível lutar contra o fascismo sem lutar contra o imperialismo”.