O artigo O que é isso, companheiro?, publicado pelo portal Brasil 247 no dia 18 de fevereiro, traz um debate interessante sobre dois personagens bastante conservadores do núcleo de apoio do governo Lula. Assinado por Florestan Fernandes Jr., o texto apresenta uma crítica a outro texto, a carta aberta do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como “Kakay”.
Antes de analisarmos o texto escrito por Fernandes Jr., façamos apenas um breve esclarecimento àqueles que desconhecem o conteúdo da carta de Kakay. Divulgada amplamente no aplicativo de mensagens WhatsApp, a carta contém um desabafo do advogado, que alega que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria tomado a decisão de “se isolar”, evitando ouvir conselhos de pessoas próximas. Para Kakay, esse seria o motivo de o governo estar passando por uma turbulência política.
Dito isso, passemos agora ao texto de Fernandes Jr. Visivelmente incomodado com a crítica de Kakay ao presidente da República, o autor inicia o artigo com uma verdadeira pérola:
“Nunca tive notícias de alguém que escreve uma carta aberta criticando um amigo. Mas foi exatamente isso que fez o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.”
Podemos traduzir da seguinte forma a ideia de Fernandes Jr.: amigos não se criticam publicamente. A pergunta que fica é: que tipo de amigo o autor já conheceu na vida?
Qual seria o problema de criticar alguém publicamente? A pessoa pode não gostar da crítica? Paciência, pois ela também não iria gostar se fosse criticada em particular.
A pessoa pode se sentir constrangida, pressionada? Lamentamos despertar Florestan Fernandes Jr. de seu sonho, mas é isso que acontece com os políticos. Alguém no mais alto cargo público no País, a presidência da República, é pressionado e constrangido a todo instante por seus inimigos.
E é justamente por isso que é importante a crítica dos amigos. Na medida em que alguém como Lula tem seus erros criticados publicamente, isso favorece o próprio Lula.
O debate permite que os seus apoiadores se esclareçam e, assim, possam melhor defender o governo contra os seus inimigos. Tomemos como exemplo a pressão da burguesia para que o governo corte os investimentos na assistência social. Na medida em que a grande imprensa pressiona o governo para cortar os investimentos, acusando o governo de ser corrupto e irresponsável, um governo fraco como o atual mandato petista tende a ceder e seguir a política de seus inimigos. Na medida em que essa política é criticada e as massas compreendem que se trata de uma investida dos banqueiros, elas podem se mobilizar contra os inimigos do governo e, assim, fortalecê-lo na luta contra o grande capital.
Após o início lamentável, Fernandes Jr. segue, então, explicando que, pior que criticar publicamente, seria publicar na atual conjuntura:
“Respeito muito o Kakay pelo seu posicionamento político, mas não havia momento pior para ele fazer o seu verdadeiro ‘sincericídio’ público ao amigo ‘ausente’.”
Sobre a conjuntura, entraremos em detalhe logo mais. Por ora, destacamos a malícia do autor, que, no empenho de defender a ideia ultraconservadora de que o governo Lula não poderia ser criticado, insinua que Kakay escreveu a carta motivado por questões pessoais e afetivas.
A malícia aqui é apenas um traço típico do pequeno-burguês inimigo da crítica. Incapaz de debater as ideias, vê naquele que pensa diferente alguém sem legitimidade para fazê-lo. Ideias são ideias e, sejam elas motivadas por questões pessoais ou não, merecem ser debatidas.
O mais interessante é que, no parágrafo seguinte, Fernandes Jr. apresenta uma concordância total com Kakay – embora não o diga expressamente – naquilo que é mais importante concernente o governo Lula. O autor se revela um grande defensor da política fracassada da “frente ampla”:
“Todos nós sabemos que Lula conseguiu compor uma frente ampla porque o centro não tinha um nome para derrotar Bolsonaro. (…) Todos nós sabíamos que essa frente tinha data de validade. E ela chegou no meio do ano passado para cá. Basta ver a guinada que a mídia corporativa deu nas relações com o governo federal. Acabou a aliança para a pacificação. (…) No meio do ano passado, começou a pressão das grandes empresas de comunicação para o governo prorrogar a desoneração da folha de pagamento. Isso em pleno momento em que Haddad tentava elaborar o tal pacote de gastos para atender as demandas do mercado financeiro. (…) Nos últimos cinco meses de 2024 o governo passou a viver sob o fogo cerrado da mídia e da oposição. (…) Na sequência a extrema direita cria uma fake News, amplamente divulgada de que o governo iria taxar o PIX. Resultado: caminho aberto para Roberto Campos subir os juros e botar mais lenha na fervura na desconstrução de Lula. O objetivo está claro, desidratar o presidente e abrir caminho para o candidato de extrema direita perfumado, Tarcísio de Freitas.”
Podemos assim resumir a ideia de Florestan Fernandes Jr.: Lula é um gênio por ter agrupado uma “frente ampla” para vencer Jair Bolsonaro (PL), mas essa mesma “frente ampla” agora está sabotando o governo e resta ao povo brasileiro esperar para saber qual será a nova jogada genial do presidente.
Essa é, quase que integralmente, a mesma ideia de Kakay:
“Neste atual governo, Lula fez o que de melhor podia ao enfrentar Bolsonaro e ganhar do fascismo, impedindo que tivéssemos mais 4 anos de Bolsonaro. Seria o fim da democracia. Seriam destruídas, de maneira irrecuperável, tudo que foi construído nos governos democráticos, não só do PT. (…) O fascismo acaba com tudo. Este o maior legado do Lula. Para tanto, foi necessário, senão não teríamos ganhado, fazer uma aliança ampla demais. Só o Lula conseguiria unir e fazer este amplo arco para derrotar Bolsonaro. (…) Aqui em casa, no dia da diplomação, 12 de dezembro, determinado político se aproximou em um momento em que Lula e eu conversávamos, colocou amistosamente a mão no meu ombro e fez uma brincadeira. Ao sair da roda, o Lula me falou baixinho, rindo: “este jamais será meu ministro, e acha que vai ser”. Dia 1º de janeiro, ele assumiu como ministro. Este o brilhantismo do Lula neste momento difícil. Não fosse sua maturidade, não teríamos tido chance de vencer o fascismo. (…) Mas o Lula do 3° mandato, por circunstâncias diversas, políticas e principalmente pessoais, é outro. Não faz política. Está isolado. Capturado. Não tem, ao seu lado, pessoas com capacidade de falar o que ele teria que ouvir.”
Para Kakay, portanto, Lula teria sido um gênio por agrupar a “frente ampla”, mas estaria com problemas (que Kakay não tem coragem de creditar à “frente ampla”, embora fique subentendido) e a solução estaria não em esperar uma jogada genial de Lula, mas que o presidente ouvisse meia dúzia de senadores.
Em essência, é a mesma coisa. Kakay e Fernandes Jr., por serem ambos defensores da mesma política, são incapazes de apontar o dedo para o real problema do governo: Lula está cedendo à pressão da ala direita da “frente ampla”. O governo é muito fraco e, por isso, está adotando uma política oposta àquela que os seus eleitores esperavam.
A solução para a crise do governo está em romper com a “frente ampla”. Está em tomar medidas enérgicas como a demissão de Fernando Haddad e Simone Tebet e em uma mudança radical na política econômica. Está na demissão de Marina Silva e na exploração dos recursos naturais brasileiros. Está, portanto, em uma luta contra os sabotadores do governo.
Para tal, o governo precisa fazer o que se negou a fazer durante todos os seus mais de 800 dias de mandato: é preciso mobilizar o povo. Só assim o governo terá força para brigar contra aqueles que o sabotam.
Nem Kakay, nem Fernandes Jr. apresentam essa solução, pois têm como política preservar o pacto do Partido dos Trabalhadores (PT) com a direita parasitária e inimiga do povo brasileiro. Nesse sentido, tanto a “solução” de um como de outro não passam de velhos truques petistas para manter as coisas como estão.
“Confiar” na “genialidade” de Lula levará o governo a sua total desmoralização. Significa permitir que o governo ceda mais à direita e, assim, fique cada vez mais fraco. Ouvir meia dúzia de senadores também não irá mudar nada. É preciso ter uma mudança de política, ou o governo irá fracassar completamente.