Lei do silêncio

A classe média e a preocupação com o ‘barulho’

A pequena burguesia tenta analisar o mundo sem sair da sua ilha social e no final só o que consegue fazer é justificar as políticas da burguesia de verdade

Nesta segunda-feira (17), o jornalista e chargista Miguel Paiva publicou coluna intitulada Durma-se com um barulho desses no Brasil 247, fazendo referência a um texto escrito há 14 anos atrás por Ferreira Gullar. Trata-se de um testemunho da sofrência pequeno-burguesa gerada pelo contraste entre se identificar como burguês e ter que lidar com uma realidade onde tem que conviver minimamente com o povo. Assim como Gullar, Paiva cita seu incômodo com o barulho feito pelos coletores de lixo quando eles gostariam de gozar do silêncio noturno.

Ao lidar com um problema menor, como o barulho urbano, essa classe média acaba exagerando na sua ponderação entre o que é um problema sério e o que não passa de um capricho. Além disso, demonstra uma falta de sensibilidade com a população que insiste em existir ao seu redor: “Nada contra as pessoas trabalharem desde cedo, conversarem, darem risadas e executarem tarefas barulhentas. Mas para tudo existem regras e a lei do silêncio, apesar de resistir, é a menos respeitada”. Como se a maioria das pessoas que trabalha de madrugada fizesse isso porque prefere, porque acha mais agradável trabalhar enquanto os outros dormem.

Aliás, escrever como no subtítulo que “a lei do silêncio, apesar de resistir, é a menos respeitada” é uma demonstração de completa alienação da realidade. Direitos constitucionais como a liberdade de expressão e o direito à vida não estão sendo respeitados. Fatos impossíveis de ignorar mesmo para quem não mora num bairro onde a polícia entra atirando para todo lado ou para quem não é alvo da censura, já que tem opiniões bem aceitas pela burguesia. Para Paiva, quem sofre nas manhãs do bairro onde mora é ele próprio e não as pessoas que trabalham cedo, inclusive em “tarefas barulhentas”, mesmo que essas pessoas barulhentas tenham vindo de longe para trabalhar lá.

Essa desconexão com a realidade da vida da maioria das pessoas produz pérolas como o trecho abaixo, onde o jornalista expõe sua mentalidade pequeno-burguesa ao abordar o problema do barulho do fluxo de caçambas na rua onde mora:

“Trabalho muito à noite, portanto, às vezes, acordar mais tarde é um direito meu. E quando falo mais tarde é por volta das 8 da manhã. Nada demais. Existe aqui no condomínio onde moro uma regra de só começarem a fazer barulho depois das 9. Parece civilizado e é. Às 9 em ponto começam. Às vezes param às 10 e não fazem mais barulho. Vai entender.”

Sobra também para os motoqueiros, que incomodam o jornalista enquanto levam comida para seus vizinhos ou talvez até para ele próprio, pois “depois da pandemia o delivery virou um hábito“. Enquanto a pequena burguesia sofreu a pandemia com o isolamento social dentro de casa, a maioria do povo seguiu sofrendo com sua dura realidade social, incluindo os barulhentos motoqueiros que atormentam nosso colega:

“Eles aceleram bem aqui na minha janela. Acho que acontece na janela de todos, mas acho que é comigo. Nada contra o trabalho, o uso das ruas, a liberdade de ir e vir das pessoas, mas tudo tem um limite ou uma regra”.

O sofrimento do jornalista não se limita aos barulhos de trabalho, mas também aos barulhos de lazer. Estando cercado de restaurantes, nosso mártir também é vítima de barulhos de automóveis e de música ao vivo:

“Os vizinhos mais próximos, coitados, têm que aguentar o som ao vivo nos sábados e domingos que ocupa o meio da rua. Tudo certo, a farra é boa, mas tem gente que não gosta e isso deveria ser levado em consideração”.

A lei do silêncio no Rio de Janeiro, evocada por Paiva, é a Lei nº 6.179/ 2017, que estabelece multa de R$ 5 mil para bares, restaurantes e “demais pessoas jurídicas de direito privado assemelhadas”. Esse valor é corrigido anualmente e dobrado sucessivamente em caso de reincidência, quando também pode ocorrer a “interdição parcial ou total do estabelecimento”. A legislação ainda atinge um leque maior de possibilidades, com termos vagos como “algazarras” e “sossego público”:

“Constitui infração a ser punida na forma desta Lei perturbar o bem-estar e o sossego público ou da vizinhança com algazarras ou barulhos de qualquer natureza, inclusive os produzidos por animais domésticos, voz humana, som musical, obras, reformas e outros capazes de prejudicar o meio ambiente, a saúde, a segurança ou o sossego público”.

Em São Paulo, segundo o portal da prefeitura a respeito do Programa Silêncio Urbano (PSIU), as multas podem variar de R$12 mil a R$36 mil e também é prevista a possibilidade de fechamento de estabelecimentos. A Lei Municipal nº 16.402/2016 estabelece limite de decibéis por zona, independentemente da origem do som. Existe um verdadeiro arsenal legal que cobre ruídos de automóveis, motos, obras, bares, estabelecimentos que realizam shows e por aí vai.

E, para além dessa legislação, a classe média ainda dispõe do aparato repressivo do Estado, que está sempre de prontidão para interromper violentamente aglomerações de jovens, especialmente na periferia. A polícia militar e as guardas municipais, cada vez mais militarizadas, não precisam de maiores incentivos para fazer valer sua própria versão das leis repressivas.

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