Em ocasião dos 85 anos do assassinato de Leon Trótski, um dos maiores crimes contra a classe operária mundial, reproduzimos na edição de hoje o artigo A batalha de Trótski contra o stalinismo e pelo socialismo verdadeiro, publicado originalmente pelo Dossiê Causa Operária.
Até os nove anos de idade, o jovem Lev Davidovitch Bronstein viveu no campo, afastado de tudo, sem sair da casa de seus pais, humildes e prósperos lavradores na pequena localidade de Kherson, na atual Ucrânia.
Um ano após ter concluído os estudos secundários em Odessa, foi preso pela primeira vez, assim como muitos revolucionários de sua época que semeavam as primeiras sementes da revolução de 1917.
As prisões, deportações e exílios lhe ensinariam muito mais do que qualquer universidade. Sob o regime czarista, foi preso duas vezes, cumprindo ao todo quatro anos de reclusão. Sua primeira deportação lhe valeu dois anos. Fugiu duas vezes da Sibéria e pelos doze anos seguintes emigraria de país em país, percorrendo toda a Europa e a América, totalizando dois anos de exílio antes da revolução de 1905 e quase dez anos depois desta ter sido derrotada.
Durante a Primeira Guerra Mundial, foi condenado por contumácia pelo Império Alemão. Em 1916, foi expulso da França para a Espanha e depois de alguns meses preso em Madri foi mandado para os EUA. De Nova Iorque recebeu a notícia da eclosão da revolução de fevereiro. Partiu imediatamente para a Rússia, porém foi novamente pego pela polícia e passou um mês detido em um campo de concentração no Canadá.
Como militante revolucionário, teve uma vida extraordinária, quase fantástica. Dirigiu as revoluções de 1905 e 1917, foi presidente do Soviete de Petrogrado também em 1905 e 1917, a primeira vez com apenas 26 anos! Teve ação decisiva na Revolução de Outubro e organizou a insurreição que estabeleceu o primeiro Estado operário que a humanidade conheceu. Foi nomeado comissário do povo para negócios estrangeiros, dirigindo o acordo de paz de Brest-Litovski que tirou a Rússia da guerra imperialista.
Como comissário do povo para a guerra e a marinha, dedicou cinco anos à criação do Exército Vermelho. De grupos guerrilheiros dispersos criou uma força combatente de cinco milhões de homens que derrotou 14 exércitos imperialistas. Somou-se a este esforço titânico sua dedicação à completa reorganização da malha ferroviária russa.
Publicou obras monumentais cuja contribuição para a humanidade é impossível de ser calculada. Intolerante à desordem, aliou metodicamente todas as suas tarefas à atividade de grande teórico marxista e materialista dialético. Foi considerado por muitos o maior orador da sua época.
Escreveu “A História da Revolução Russa”, “Minha Vida”, “Os Crimes de Stálin”, “A Revolução Traída”, “A Revolução Permanente”, “A Revolução Desfigurada” e “Stálin” – esta inacabada em decorrência de seu assassinato. Uma vasta obra de conteúdo teórico inestimável, mais poderoso e devastador do que qualquer método intimidador praticado pelo stalinismo. Se não fosse Trótski, o mundo não teria conhecimento do que realmente foi o stalinismo.
Expulso do partido em 1927, passaria dois anos na fronteira com a China, na cidade de Alma Ata, no Cazaquistão. Em 1929 foi finalmente expulso da União Soviética.
A partir daí, uma nova fase em sua vida começaria. Uma etapa de derrotas capaz de colocar à prova qualquer homem: a luta contra o stalinismo.
Travou esta luta de maneira absolutamente consciente. Como ele mesmo escreveria em seu diário: “Eu creio que faço neste momento, apesar de extremamente insuficiente e fragmentário, o trabalho mais importante de minha vida, mais importante do que o de 1917, mais importante do que o da guerra civil”.
Do exílio em Prinkipo, na Turquia, até seu assassinato em Coyoacán, no México, Trótski foi o responsável por denunciar e desmascarar em meio ao mais profundo isolamento político a burocracia stalinista que levou à derrota da Revolução Russa e a penetração capitalista no país até o seu colapso em 1991. Mesmo diante dos assassinatos de toda a vanguarda revolucionária bolchevique, de todos os dirigentes da Revolução de 1917 e de todos os companheiros de Lênin, Trótski jamais deixou se influenciar pelas calúnias, difamações e pela pressão que sofria por todos os lados.
Enquanto suas obras dissecavam o processo de burocratização da União Soviética, toda a burguesia dos países democráticos, os regimes fascistas e Stálin se uniam contra ele.
Todos os crimes de Stálin denunciados por Trótski obrigaram mais tarde o Estado soviético a lançar mão dos “Relatórios Kruschev”, recurso só utilizado pela burocracia para atenuar a crise do Estado e a convulsão social gerada a partir da morte de Stálin, em 1953.
Se não fosse por Trótski, que obstinadamente enfrentou sozinho toda a burguesia mundial, até hoje a humanidade teria grande dificuldade para pintar um quadro realista do que foi o stalinismo.
Os problemas da revolução
No dia 25 de outubro (7 de novembro pelo nosso calendário) de 1917, o Comitê Revolucionário Militar do Soviete de Petrogrado decide que os trabalhadores iniciem uma insurreição e tomem o poder. A proposta de Lênin leva o partido à sua principal tarefa, apostando toda sua organização e seus militantes em uma única missão em um único dia. A influência de Lênin foi decisiva para o convencimento da maioria do Comitê, porém estava incumbida a Trótski a tarefa de organizar a insurreição. O próprio Stálin reconhecia que “todos os trabalhos de organização prática da insurreição foram colocados sob a direção imediata do presidente do Soviete de Petrogrado, o camarada Trótski. Podemos dizer com certeza que o partido deve a rápida adesão das tropas para o lado dos sovietes e o trabalho preciso do Comitê Militar Revolucionário, acima de tudo e principalmente, ao camarada Trótski”. (Pravda, 6 de novembro de 1917).
No quartel-general do Instituto Smolni, Lênin e Trótski aguardavam pelas notícias da tomada do Palácio de Inverno e se perguntavam se outros dirigentes poderiam ser capazes de levar a frente o novo governo do Conselho dos Comissários do Povo.
Nas próximas eleições durante o Congresso de Sovietes, o partido bolchevique possuía uma maioria absoluta, enquanto que os partidos derrotados, de caráter pequeno-burguês e centrista, foram aos poucos se dissolvendo. Os mencheviques passaram a sugerir um governo de coalizão, porém foi recusado pelos revolucionários.
“Nosso levante foi vitorioso. Agora eles dizem: renunciam à sua vitória, rendam-se, façam um compromisso. Com quem? Com estes pequenos grupos miseráveis que saíram ou com aqueles que fizeram estas propostas? (…) Ninguém mais em toda a Rússia os segue. Vocês são miseráveis, indivíduos isolados. Estão falidos, já cumpriram seu papel. Vão para o lugar a que pertencem: a lata de lixo da história” (Trótski, A História da Revolução Russa). Mais de uma década depois, Trótski mostraria por que perdeu o poder.
A revolução enfrentava grandes problemas. As potências imperialistas estavam desesperadas. Começava a invasão e a guerra civil.
Na Alemanha, os soldados recebiam panfletos que diziam para atirarem em seus oficiais. Trótski fora nomeado Comissário de Assuntos Estrangeiros para concluir o acordo de Brest-Litovski. Nesta ocasião, o Comitê Central Bolchevique aprovou por maioria a proposta de Trótski de negociar com os alemães e ao mesmo tempo impulsionar uma campanha de propaganda e agitação para a revolta dos trabalhadores alemães.
A capacidade de Trótski já havia sido testada na Revolução de Outubro, por isso logo se tornou o responsável por organizar o Exército Vermelho na guerra civil.
Em 1919, no ponto mais crucial da guerra, Lênin realiza o Congresso de fundação da Terceira Internacional. Enquanto isso, na Alemanha, a revolução era abortada em um gigantesco massacre que tem como ponto de partida o assassinato brutal dos líderes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e pela formação de um governo burguês dirigido pela social-democracia contrarrevolucionária. Porém, operários e soldados não estavam dispostos a aceitar um governo formado por capitalistas. Assim como aconteceu na Rússia, conselhos operários (sovietes) se espalharam por todo o país. Mas os chefes de governo estavam decididos a fazer de tudo para evitar uma revolução “bolchevique” também na Alemanha.
A guerra civil arruinou a economia russa e dezenas de milhares de operários padeciam de fome ou eram mortos nas batalhas. O Comunismo de Guerra foi uma das alternativas para acelerar a revolução, aumentando as expropriações e os confiscos.
No 10º Congresso Bolchevique, Lênin propõe a adoção da Nova Política Econômica (NEP) em substituição ao Comunismo de Guerra, permitindo assim uma maior abertura do mercado. Trótski estava completamente de acordo e acrescentou: “Não devemos construir o socialismo pela via burocrática, não devemos criar uma sociedade socialista pelas normas administrativas. A burocratização é o inimigo mortal do socialismo” (Izvestia, 2 de junho de 1925). Após a morte de Lênin no ano anterior, Trótski iniciaria a luta contra a burocracia pelos próximos quinze anos de sua vida.
A ascensão de Stálin
A revolução transpirava em toda a Europa, mas apesar da Rússia já estar nas mãos dos trabalhadores, nos países imperialistas, os partidos revolucionários, recém formados da ruptura com o reformismo contrarrevolucionário, não conseguiram superar os mecanismos de contenção, abrindo uma nova etapa. Diante da divisão da classe operária e do refluxo da primeira onda da revolução, o Terceiro Congresso da Internacional Comunista aprova o conceito da Frente Única, proposto por Lênin e Trótski. Contrários à decisão estavam Zinoviev, Bukharin e o húngaro Bela Kun.
“Para assegurar a vitória do socialismo é necessário ter unida a força dos trabalhadores dos vários países altamente desenvolvidos”, disse Lênin.
A proposta visava unir contra um inimigo em comum comunistas, sindicatos, organizações social-democratas. Tal como Trótski precisou, “marchar separadamente, mas golpear juntos”. Era uma política destinada à acumulação de forças.
Em março de 1922 realizava-se o 11º Congresso Bolchevique, o último que Lênin participaria. Após o congresso, o Comitê Central elegia uma figura de bastidores para a Secretaria Geral do partido, Stálin.
Em maio de 1922, Lênin fica seriamente doente e a direção do partido passa para Zinoviev, Kamenev e Stálin.
A política centrista dos dois primeiros abriu caminho para que a burocracia estatal, em busca de privilégios, animada pela NEP, levantasse a cabeça. A unidade do partido e sua direção proletária estavam em risco.
Lênin, tomado por um derrame, acompanhava como podia as discussões. Mesmo sem ter mais uma participação ativa dos acontecimentos, alertava sobre o perigo tanto da direção de Zinoviev e Kamenev, como de Stálin. “Este cozinheiro fará somente pratos apimentados”, comentava.
“Nosso Estado operário está deformado – o peso da burocracia é grande demais”. A última batalha de Lênin foi tentar destituir Stálin do cargo e introduzir mecanismos antiburocráticos no Estado operário.
Durante as preparações para o 12º Congresso do partido, em março de 1923, Lênin tinha dois objetivos: censurar Stálin por ter ordenado que o Exército Vermelho invadisse a Geórgia e retirá-lo da Secretaria Geral.
Lênin mais uma vez não pôde comparecer ao Congresso. Extremamente debilitado, morre em 21 de janeiro de 1924. Durante seu funeral, Trótski se encontrava em Sukhum, no Cáucaso, para recuperar-se de ma infecção, quando recebeu um telegrama de Stálin que dizia: “O Politburo acha que devido ao seu estado de saúde, você deve permanecer em Sukhum”. A tróika formada por Zinoviev, Kamenev e Stálin busca afastá-lo dos acontecimentos e organiza um verdadeiro golpe de Estado silencioso.
Em seu testamento, Lênin fez sua última exigência: “Stálin deve ser retirado do cargo de Secretário-Geral”, mas o Politburo manteve-se em silêncio e não publicou o Testamento, apesar dos protestos da viúva de Lênin, Nadia Krupskaia.
“O episódio de outubro, envolvendo Zinoviev e Kamenev, não foi acidental”. Lênin referia-se à discordância dos dois dirigentes quanto à tomada do Palácio de Inverno em outubro de 1917.
A esta altura, com a revolução esmagada na Alemanha, as condições na Rússia se deterioravam ainda mais. A burocracia consolidava-se em torno de oficiais militares,
burocratas e funcionários do partido, técnicos, gerentes de fábrica, etc., uma ampla camada aristocrática dispostas a não abrirem mão de seus privilégios materiais. O próprio Trótski reconhecerá depois, tardiamente, “fomos derrotados pela burocracia em 1924”.
A oposição de esquerda
Com Lênin doente, Trótski percebeu a tendência à burocratização do Estado operário e o aniquilamento da revolução por dentro. Em outubro de 1923 iniciou uma luta dentro do partido, assinando a Carta dos Quarenta e Seis, um documento aceito por 46 dirigentes bolcheviques contra a direção do partido, exigindo um novo planejamento econômico, liberdade de crítica e a realização de uma conferência extraordinária para discutir a nova situação. Dentre os 46 estavam homens do quilate de Preobrazhenski, economista e membro do Politburo, Antonov-Ovseenko, chefe do comissariado político do Exército Vermelho, Muralov, comandante da prisão de Moscou, Sapronov, líder da Oposição Operária, além do próprio Trótski. Todos estes foram assassinados posteriormente por agentes stalinistas.
Já em 1923, uma campanha de difamação e calúnia é colocada em marcha contra Trótski, líder da Oposição de Esquerda.
“Em Leningrado, em Moscou, nas províncias, haviam-se realizado milhares de conferências secretas para preparar a chamada ‘discussão’, isto é, uma campanha sistemática que não tinha por objetivo a oposição, mas a minha pessoa. (…) Era um espetáculo majestoso no gênero. A calúnia parecia uma erupção vulcânica: a massa do partido ficou abalada. Eu, doente, calava-me. A imprensa e os oradores não se ocupavam mais do que denúncias sobre o trotskismo. Ninguém sabia exatamente o que significava essa palavra. Todo o dia se evocavam novos episódios do passado, citações polêmicas extraídas dos artigos de Lênin escritos vinte anos antes, deformadas e alteradas; e tudo era apresentado como se datasse da véspera. Não se compreendia mais nada. Se tudo isso era verdade, Lênin deveria forçosamente ter sabido! Depois de tudo isso viera a guerra civil! Trotski fundara com Lênin a Internacional Comunista! Os retratos de Trótski estão pendurados em toda parte ao lado dos de Lênin! Mas a calúnia vomitava e sua lava gelada. Pesava mecanicamente sobre a consciência e, ainda mais, sobre a vontade” (Trótski, Minha Vida).
Lênin perguntara a Trótski sua opinião sobre as dificuldades de administração do Estado. “As dificuldades, como sempre, são consequência do aparelho administrativo”, respondeu Trótski. Lênin interrompeu: “É isso mesmo, a nossa burocracia é monstruosa. Fiquei horrorizado quando retomei o trabalho. É preciso que você seja designado como meu substituto”.
Após a morte de Lênin, o 13º Congresso do Partido condena a fração liderada por Trótski. Zinoviev defende sua expulsão do partido e Stálin alega que “é impensável a liderança do partido sem Trótski”. Zinoviev rebate: “Force-o a repensar suas posições. Krupskaia afirma: “Esta é uma exigência psicologicamente impossível e deve ser rejeitada.
Em 1924, Trótski perde seu cargo de Comissário de Guerra após a publicação de “Lições de Outubro”, onde refuta todas as críticas contra ele. No ano seguinte, Trótski é retirado do Conselho Revolucionário Militar e é proibido de fazer novos discursos.
“Portanto, com a insígnia da infâmia apunhalando a insígnia de sua fama, com os clamores da denúncia badalando em seus ouvidos, amordaçado e proibido até mesmo de defender a si próprio, ele deixou o Comissariado e o Exército que tinha liderado por sete longos e decisivos anos” (Issac Deutscher, O Profeta Desarmado).
Nos quarenta anos de sua militância revolucionária, quase toda sua família foi dizimada. Quem quer se aproximasse dele corria sério risco de vida. De fato, vários de seus secretários durante o exílio foram assassinados. Ele mesmo sofreu inúmeros atentados contra sua vida antes de receber um golpe fatal na cabeça. Ainda assim, jamais deixou de ter plena consciência de sua tarefa como revolucionário marxista.
Na próxima edição, daremos continuidade à descrição da luta empreendida pela Oposição de Esquerda e as derrotas da classe operária na greve geral da Inglaterra, na revolução chinesa de 1927, bem como na França, na Espanha e na Alemanha, destacando estes dois últimos países como cenário para a ascensão do fascismo. Em todos estes casos, o stalinismo teve uma participação ativa para conter o movimento revolucionário e independente das massas.
Daremos também continuidade à explicação do processo de burocratização do Estado soviético e do combate vigoroso do exército de um homem só, que expulso de seu país dedicaria ainda mais de uma década de sua militância no exílio, denunciando todos os crimes de Stálin.
O partido bolchevique e a revolução
Quando Lênin desembarcou na estação Finlândia, no dia 16 de abril de fevereiro, em Petrogrado, tinha absoluta consciência de que seu discurso provocaria a vacilação entre os próprios bolcheviques. Um dos mais fiéis dirigentes marxistas, Lev Kamenev, escreveu ao Pravda, órgão de imprensa do partido Bolchevique, a seguinte afirmação: “Quanto ao esquema geral do camarada Lênin, para nós é inaceitável o ponto em que começa com a afirmação de que a revolução democrático-burguesa chegou ao fim e que agora se trata da imediata transformação desta revolução em uma revolução socialista”. Fervia naquele tempo o debate entre a revolução socialista e a revolução burguesa em um país atrasado como a Rússia. Para toda uma ala dos socialistas russos, inclusive dentro do próprio partido bolchevique, a revolução proletária não seria possível sem que antes necessariamente fosse concluída a revolução democrática. Efetivamente, estava colocada naquele país a realização das transformações sociais históricas de caráter democrático-burguês, como a abolição das relações semi-feudais no campo, a eleição de uma assembleia constituinte e a proclamação de uma república democrática com liberdade de voto, de imprensa e de partidos. Tudo isso implicava na derrubada revolucionária da monarquia, porém o problema estava em quem seria capaz de cumprir estas tarefas e por quais meios. De um lado, havia uma burguesia vacilante, tornada contrarrevolucionária antes de chegar ao poder, com mais medo dos trabalhadores do que do próprio czar e da aristocracia. Além disso, a burguesia europeia estava disposta a apoiar o czar para defender seus investimentos na Rússia. No entanto, pelo fato de defenderem seus próprios interesses, a burguesia não poderia ser capaz de levar adiante uma revolução. Havia, portanto, do outro lado, os trabalhadores da cidade e do campo, que deveriam lutar contra o czar e contra a burguesia. Trótski, mais tarde, faria uma apreciação em seu livro genial Balanço e Perspectivas, numa reedição de 1919, dois anos após a Revolução Russa: “Permanecendo fora das duas facções durante o período da emigração, o Autor não chegou a validar plenamente a importância do fato de que, na realidade, a partir do desenvolvimento entre bolcheviques e mencheviques, se agrupavam, de um lado revolucionários inflexíveis e do outro, elementos que resvalam, dia a dia mais, pelo declive do oportunismo e da conciliação”. Aqui há um claro balanço, uma superação da maré ideológica latente no início da Primeira Guerra Mundial, quando Trótski ainda se opunha a determinadas ideias de Lênin sobre o partido: “Não é preciso e não é necessário compartilhar do pensamento estreito e sectário dos bolcheviques, mas não se pode negar que, na Rússia, no grosso da ação política, o assim chamado leninismo, está se libertando do comportamento sectário e que os grupos de trabalhadores ligados ao jornal de Lênin, o Social Democrata, são hoje na Rússia a única força internacionalista que não pertence a nenhuma facção, não existe outro caminho a não ser se fundir aos leninistas, o que em muitos casos significaria juntar-se à organização leninista”. Quando explode a revolução de fevereiro, Trótski passava sua décima semana em Nova Iorque, após ser expulso da França como “aliado suspeito”. Estava colocada a tomada do poder pela classe operária. “Devemos lutar pela revolução socialista, lutar até o fim, até a vitória completa do proletariado. Longa vida à revolução socialista!”. Este era o claro discurso de Lênin. O revolucionário “independente” Trótski estava cada vez mais inclinado ao bolchevismo. No começo de maio, Trótski agitava operários e soldados em Petrogrado: “Relembrem três ordens: destruir a burguesia, controlar seus próprios líderes e confiar em sua própria força revolucionária!” Em poucas semanas, ele se uniria definitivamente aos bolcheviques, superando suas últimas limitações na compreensão das relações internas dentro da social-democracia e do papel da ala pequeno-burguesa do socialismo, o menchevismo. A decisão da imediata tomada do poder ocorreu durante uma sessão clandestina do Comitê Central bolchevique. Treze membros estão presentes, incluindo Lênin, Trótski e Stálin. Todos votam a favor da insurreição, menos dois: Zinoviev e Kamenev. Em um artigo publicado contra a revolução, Kamenev refutava que “antes da história, antes do proletariado internacional, antes da revolução russa e antes da classe operária russa, antes de tudo isso, não temos o direito de jogar todo o futuro na cartada de uma insurreição armada”.
A ascensão da burocracia
A mais comum interpretação da degeneração da Revolução Russa consiste em atribuí-la a uma orientação política equivocada do partido bolchevique ou, no extremo, uma consequência das falhas metodológicas do próprio marxismo em geral. Outros a atribuiriam à traição e à personalidade negativa de Stálin, cuja vocação para ditador teria levado a revolução à crise. É uma manifestação extrema da concepção idealista da história, onde são as ideias e a vontade dos homens que comandam a história como se fosse uma peça de teatro. A degeneração do estado soviético foi o resultado do crescimento e do predomínio da burocracia sobre ele. Este fato se dá em 1924 no momento da morte de Lênin. A partir daí, a burocracia vai buscar consolidar o seu predomínio através de uma política nacionalista e cada vez mais abertamente contrarrevolucionária até a consolidação do governo bonapartista de Stálin à véspera da II Guerra. A derrota da classe operária e a vitória da burocracia foram o resultado da luta de classes em um país onde a revolução não conseguiu, como não seria possível, superar as enormes contradições de classe. Lênin e Trótski e outros dirigentes bolcheviques assinalaram, de início, que se a revolução não fosse socorrida pela revolução internacional, fatalmente entraria em colapso. Daí a importância primordial que deram à organização revolucionária da classe operária na III Internacional. Seu prognóstico cumpriu-se de uma maneira original, através daquilo que Trótski veio a denominar como o “Thermidor soviético’, ou seja, uma reação política dentro da revolução que, a exemplo do Thermidor francês, não conseguiu alterar as bases sociais da revolução. O Thermidor, como se sabe, foi seguido pelo golpe bonapartista e este pela restauração. A revolução na Rússia seguiria etapas muito semelhantes em um período muito mais prolongado de tempo. O Thermidor soviético foi a ascensão da burocracia ao poder, derrotando uma classe operária acuada pelo imperialismo e pela enorme massa camponesa internamente, nas condições de profunda destruição econômica interna e de refluxo da revolução mundial. Stálin, que após intensas lutas políticas torna-se o chefe da burocracia contrarrevolucionária, nada mais foi que um instrumento da burocracia, e não seu criador. Instrumento extremamente oportuno pela sua completa miopia política e pelo seu passado revolucionário. A luta política que expressou este processo se deu toda ela na forma de uma luta contra o “trotskismo” que, na realidade, encobria a luta entre a burocracia e a classe operária. Seus eixos fundamentais, extraídos artificialmente por Zinoviev, Kamenev, Stálin e outros, da história da social-democracia russa foram a teoria da revolução permanente e o passado anti bolchevique de Trótski. Seu principal trunfo foi a incompreensão da maior parte da vanguarda da revolução do processo social que se desenrolava através deste debate aparentemente escolástico que versava sobre quem seria o discípulo mais ortodoxo do mestre defunto. Trótski procurou, sem sucesso, assinalar este fato, com o que conseguiu o reagrupamento dos elementos mais conscientes do partido em dissolução na Oposição de Esquerda, a ala proletária e marxista do partido que travou uma luta desigual contra os representantes da burocracia.
A burocracia e a crise do partido
No 13º Congresso do Partido, realizado em maio de 1924, a direção stalinista condena as posições de Trótski e a Oposição de Esquerda. Zinoviev defendia abertamente sua expulsão do partido, mas o próprio Stálin era contra, pelo menos até aquele momento, estando indefinida a luta no interior da burocracia entre ele e Zinoviev. No 14º Congresso, em 1926, os participantes do triunvirato, Zinoviev e Kamenev, rompem com Stálin, que forma uma nova fração com Bukharin e a Oposição de Direita, dirigida por ele. Zinoviev então, depois de muito tempo, lembrou-se do testamento de Lênin sobre os perigos de Stálin, porém suas vacilações foram fatais, resultando anos depois na sua própria execução na primeira leva dos expurgos. O comando da burocracia passava a Stálin que terminaria também por livrar-se dos seus aliados de direita. Em abril de 1926, Trótski teve um encontro privado com Kamenev e Zinoviev, que admitiram envergonhados terem conspirado com Stálin contra o “trotskismo” fabricando acusações e as piores calúnias. “Nós estávamos cegos. Stálin é mentiroso, perverso, cruel”. Trótski, lutando contra todas as adversidades, decide realizar um bloco com a ala esquerda da burocracia e forma a chamada Oposição Unificada. A esta época, a Oposição de Esquerda já contava com mais de oito mil bolcheviques dentro do partido. Travava-se uma luta sobre o destino da revolução, anda que desconectada das massas. Reuniões clandestinas eram realizadas nas casas de operários na periferia de Moscou, uma situação muito parecida com os primeiros tempos de conspiração contra o czar. A oposição defendia que o partido retomasse seu programa revolucionário original, melhorando as condições de vida dos trabalhadores urbanos, aumentando os salários, melhorando as residências, aumentando os salários-desemprego. Em relação à mulher, Trótski e seus aliados defendiam “salário igual para salário igual”. Defendiam a “eleição de diretores de sindicatos, comitês de fábrica e sindicatos independentes da gerência”. Para os camponeses, “o partido deve assumir a defesa dos trabalhadores do campo, dos camponeses pobres e médios, contra a exploração dos kulaks [camponeses ricos]”. Sobre o processo de tomada do partido pela burocracia, a Oposição resumia claramente a questão: “Um número excessivo de funcionários trabalham dentro do partido. Em janeiro de 1927, os números mostravam 462 mil funcionários e 445 mil trabalhadores. A degeneração do regime do partido fez nascer uma nova casta de burocratas. Restaurar a democracia interna do partido. Terminar com a situação da educação do partido de ser dirigida contra a Oposição. Fim da repressão e ameaças contra os dissidentes”. No front internacional, o programa da Oposição explicava: “Os desastres na China e em outros lugares são resultados de uma política errada que está sendo levada pelo Comintern. Ajudas e advertências apropriadas devem ser dadas aos chineses e outros camaradas”. O programa referia-se à política da frente popular adotada pelo Partido Comunista, orientado pela direção da Comintern, de se submeter às ordens de Chiang Kai-chek e do partido burguês nacionalista Kuomitang. Chiang Kai-chek usou deste apoio para massacrar os trabalhadores chineses em Shangai e Cantão, esmagando a revolução de 1927. “Seria pedantismo insensato sustentar que se a política bolchevique tivesse sido aplicada na revolução de 1925-27, o Partido Comunista Chinês teria inevitavelmente chegado ao poder. Porém, trata-se, de vulgaridade desprezível afirmar que uma possibilidade como esta estava totalmente fora de questão. O movimento de massas de operários e camponeses estava num nível totalmente adequado para isso, da mesma forma que a desintegração das classes dominantes” (Trótski, O grande organizador de derrotas). Em meio à revolução chinesa, irrompia no coração da maior potência imperialista do mundo, a Inglaterra, uma greve geral. No entanto, os sindicalistas ingleses aliados de Stálin admitiram a capitulação diante do primeiro-ministro britânico, Stanley Baldwin. “Pode-se dizer que a arte política da burguesia britânica consiste em encurtar o bico revolucionário do proletariado para que este não possa bicar a casca do Estado capitalista. Se olharmos para Ramsay Macdonald, Thomas, Sr. e Sra. Snowden, temos que confessar que o trabalho da burguesia na seleção de bicos curtos e maleáveis foi coroado por um estrondoso sucesso” (Trótski, Aonde vai a Inglaterra?). A um passo do exílio, Trótski permanecia isolado, sendo alvo até mesmo de campanhas antissemitas. As células do partido eram instruídas a repudiar a política “trotskista”. “Não é acidental o fato da Oposição ser liderada por judeus. Esta é uma luta contra o socialismo russo e seus aliados”, dizia Stálin, que escondia a origem judaica de Karl Marx. No começo de 1928, Trótski fez seu último discurso em uma sessão do Comitê Central. Ninguém ousou cortá-lo e menos ainda contestá-lo. Foi um silêncio absoluto. Suas palavras significavam a consciência de que dali seria expulso do partido e do país, como de fato aconteceu. Trótski e os membros da Oposição foram expulsos ou do Comitê Central ou do partido por divulgarem seus textos de oposição e a revolução permanente. No 10º aniversário da Revolução Russa, em 1927, a Oposição faz um último apelo para que as massas comparecessem à celebração. Temendo um golpe, tropas stalinistas ocuparam as cidades, colocando os trabalhadores na defensiva. Kamenev e Zinoviev, até agora na Oposição, novamente capitulam diante de Stálin e pedem sua readmissão no partido. Foi em 20 de janeiro de 1929 que Trótski recebe uma intimação para a sua deportação. “Sob o artigo 58/10 do Código Criminal, acusado de atividade contrarrevolucionária, o cidadão Trótski deve ser deportado do território da URSS”. Levado para a ilha turca de Prinkipo, ele nunca mais voltaria à Rússia. Seu pedido de asilo político foi recusado pelo governo da Alemanha e da Inglaterra. Toda a Europa e os EUA lhe negaram asilo. Não havia lugar para Trótski no mundo. Ele viria a denominar esta situação de “planeta sem passaporte”. O primeiro-ministro trabalhista, Lloyd George, foi favorável ao pedido, mas toda a burguesia se insurgiu, dentre eles o futuro premiê Winston Churchill. Mais tarde, este declararia sobre o isolamento de seu oponente: “Quando o usurpador e tirano fica reduzido a querelas literárias, quando um comunista, em vez de bombas produz efusões para a imprensa capitalista, quando o Senhor da Guerra refugiado trava suas batalhas novamente e o carrasco dispensado torna-se loquaz e prolixo no seu lar podemos nos regozijar com os sinais de que dias melhores chegaram” (Winston Churchill, Great Contemporaries, 1937). Enquanto Trótski estava vivo, Stálin nunca se considerou totalmente vitorioso e tampouco considerou Trótski totalmente vencido. Seu receio não era gratuito. A enorme crise da política stalinista abriria caminho para a política de Trótski, o qual, no entanto, encontrava-se isolado e perseguido. A burguesia era consciente da importância da luta interna na URSS. O imperialismo apoiou não apenas a ascensão da burocracia primeiro e de Stálin, depois, ao poder, como também os processo de Moscou nos anos 30, que receberam total apoio da imprensa e dos governos capitalistas. Para eles, Trótski seria sempre, até a sua morte, a personificação da revolução proletária que rondava todos os países capitalistas. Uma anedota famosa ilustra perfeitamente esta consciência da classe dominante mundial. Robert Coulondre, embaixador francês durante o Terceiro Reich, dá a oportunidade de vislumbrarmos os bastidores do medo da revolução em seu último encontro com Hitler pouco antes de estourar a Segunda Guerra Mundial. Enquanto o Führer orgulhava-se de sua estratégia de aliança com Stálin, traçando um grande triunfo militar para o próximo período, o embaixador francês indaga racionalmente sobre a possibilidade das perturbações sociais e revoluções que poderiam se seguir diante de uma longa e terrível guerra que envolvesse todos os países dominantes. “Você imagina-se vitorioso, mas já pensou em outra possibilidade, de que o vitorioso seja Trótski?”. Hitler pulou da cadeira “como se tivesse sido atingido no estômago” e gritou que esta possibilidade, a ameaça de uma vitória de Trótski, era mais uma razão pela qual a França e a Inglaterra não deveriam entrar na guerra contra a Alemanha. Ao ser informado deste diálogo, Trótski, no fundo de seu isolamento, comentou: “são perseguidos pelo espectro da revolução e dão a ele o nome de um homem”.




