José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

A aliança que tira o sono dos estrategistas do Império

“Para os países imperialistas, especialmente para os EUA, a aliança China–Rússia representa uma grande ameaça estrutural”

É conhecido que nesse momento o imperialismo, com os EUA à proa, pretende, no terreno internacional, construir as condições políticas para um confronto de grande envergadura com os seus inimigos. Entre estes últimos, destaque para China, Rússia e Irã, países chaves que compõem um dos principais blocos de resistência, o BRICS. Os EUA poderiam negociar um acordo, por exemplo, com Rússia e China, de cooperação internacional, nas várias áreas. Ambos os países aceitariam um acordo deste tipo, desde que as duas partes ganhassem, pois não desejam a guerra. Mas o imperialismo não quer fazer qualquer tipo de concessão, porque um acordo com esses países iria fortalecê-los e, dadas as atuais coordenadas econômicas, seria um perigo mortal para a própria sobrevivência do imperialismo. 

Para os Estados Unidos, a China não é apenas um inimigo no sentido militar tradicional, mas um “competidor estratégico decisivo”. Para o Pentágono, a China é o único país com potencial de se igualar aos EUA globalmente, nas várias áreas, em curto ou médio prazos. O gigante asiático é o país rival dos EUA, que mais rapidamente avança em tecnologia militar, pré-requisito fundamental para a definição de potência. A Rússia, claro, representa uma ameaça significativa, porque é a maior potência nuclear do planeta, e porque, atualmente, possui as forças armadas mais eficientes do mundo, como revela a atual situação da guerra na Ucrânia. Porém, o seu ritmo de inovação é considerado pelos EUA mais lento que o da China (talvez isso não seja assim, na área militar). 

A China é um problema para os EUA não apenas pela sua capacidade econômica e militar, mas também pela habilidade de fazer amigos, ou seja, sua sofisticada diplomacia. Esta, por sua vez, é possível, em decorrência da própria concepção de relações internacionais da China, que é amparada na ideia de paz e prosperidade entre os países. Nesse quadro geral, é especialmente problemático para os EUA a aliança entre China e Rússia, em vários planos, e que aparenta ser cada vez mais sólida e consistente. É uma aliança de cooperação mútua, na qual cada país preserva seus interesses, e que tem complementariedade nos planos econômico, militar e geopolítico. Não se trata de dois países imperialistas, que tenham a intenção de se desenvolver às custas da destruição de outros países. 

Essa aliança entre China-Rússia é muito complexa para os interesses do Império do Caos. A combinação da capacidade econômica e tecnológica da China com o controle de matérias-primas essenciais e a força militar da Rússia, constitui um amálgama de poder muito duro de ser superado. A China é a segunda maior economia do mundo (a primeira, em Paridade de Poder de Compra), tem a maior capacidade de manufatura global (da qual inclusive depende os EUA), tem avanço tecnológico (IA, hipersônicos, 5G), e robustas finanças internacionais. A Rússia traz o maior arsenal nuclear do mundo, autonomia energética, indústria de armas e forças armadas testadas em combate, além de grande influência territorial na Eurásia. 

Para os EUA, essa simbiose cria um bloco com capacidade para disputar poder global, coisa que nenhum país poderia fazer isoladamente. Essa fusão adquire um grau excepcional de solidez quando respaldada pelo BRICS, bloco que concentra grandes proporções do território, da população e da produção econômica global. Daí também a preocupação do império em, simultaneamente, minar de todas as formas o avanço do Bloco como um todo. 

Um componente adicional nesse cenário de aproximação entre China e Rússia, é a decadência da Europa. O velho continente vem apostando na escalada da guerra na Ucrânia, apesar de não ter nada: nem dinheiro, nem armas, nem munição em quantidade suficiente. Para a União Europeia e o Reino Unido, a guerra na Ucrânia é como andar de bicicleta: se parar de pedalar, vão ter que admitir a derrota militar, apesar de todos os gastos feitos para vencer Moscou. A tentativa de escalar a guerra, dessa forma, funciona como um adiamento da “hora da verdade” na Europa, que é admitir o fracasso político, econômico e militar. A constatação desse fato, com um eventual fim da guerra, poderia significar, dentre outras coisas, a dissolução da União Europeia, conforme preveem alguns especialistas. Os últimos acontecimentos na Guerra da Ucrânia têm levado os dirigentes europeus ao desespero, pois as notícias que veem do teatro de operações são de colapso iminente das forças armadas ucranianas. 

Claramente os EUA ganham se os seus vassalos europeus continuarem com a guerra, em função dos seus interesses estratégicos de enfraquecimento da Rússia. Essa não é, necessariamente, a posição de Donald Trump, que não representa os setores ligados às chamadas “guerras eternas” que os EUA promovem. Pelo contrário, Trump vem inclusive, por motivos políticos-eleitorais, atrapalhando a estratégia desse setor, com propostas de paz ou cessar-fogo na Ucrânia. Os EUA, além de estar longe da guerra em termos geográficos, ainda tem a oportunidade de fornecer petróleo e gás para a Europa, com a vantagem adicional de assistir à destruição da indústria europeia. 

Desde o final da Segunda Grande Guerra, a política externa dos EUA mantém uma orientação básica, que é nunca permitir que duas grandes potências euroasiáticas se unam. Este princípio guiou a abertura dos EUA à China em 1972, no governo de Richard Nixon, com a chamada “diplomacia triangular” colocada em marcha por Henry Kissinger. Foi o mesmo princípio que também norteou a política de contenção da URSS, estratégia central dos Estados Unidos, operada entre 1947 até o fim da URSS, em 1991.

A estratégia dos EUA era primeiro resolver a questão com a Rússia, através da guerra por procuração na Ucrânia, e depois partir para cima do “competidor estratégico decisivo”. Para tanto, foram impostas 28.900 sanções de todos os tipos, a maior quantidade já registrada na história econômica, contra qualquer país. Acontece que a aliança entre China e Rússia, reduziu bastante a eficácia das sanções e do isolamento econômico, impostos pelos países imperialistas e seus asseclas. As sanções dos países ocidentais, especialmente após 2022, forçaram a Rússia a realizar uma reconfiguração profunda da sua política externa, comercial, financeira e militar. O país passou a estreitar relações com nações não alinhadas ao Ocidente, criando novas cadeias de fornecimento, rotas de exportação e alianças estratégicas. Nesse processo, a China tornou-se o principal parceiro comercial da Rússia, com o aumento da corrente de comércio do petróleo e gás, antes destinados à Europa. A aproximação se deu também em Infraestrutura e logística (gasoduto que liga a Rússia ao mercado chinês), tecnologia e eletrônicos (chips, semicondutores, máquinas industriais, telecomunicações). 

As sanções ajudaram a acelerar o processo que os EUA mais temem, que é a redução ou o fim da hegemonia do dólar. Em 2022, União Europeia, EUA e aliados decidiram banir diversos bancos russos do sistema SWIFT (na tradução, Sociedade para Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais) que é a principal rede de mensagens financeiras internacionais. Não foram todos os bancos russos, mas os principais bancos comerciais e de investimento foram desconectados do sistema, o que limitou enormemente a capacidade de operação financeira no país. Operações comerciais passaram a ser feitas em yuan e rublo, contornando o dólar e o euro. Nesse processo, a China tornou-se o destino principal das reservas russas em moeda estrangeira. Vale lembrar que €300 bilhões (aproximadamente US$ 315 bilhões), foram bloqueados pelos países imperialistas, a maioria em países da União Europeia, o grosso, inclusive, em Bruxelas, na Bélgica. Esses valores representam dinheiro público, pertencem ao Tesouro da Rússia, são reservas internacionais estatais que estavam depositadas em bancos ocidentais. Neste momento, os governos da Europa e do G7 estão discutindo usar esses recursos para financiar a guerra por procuração na Ucrânia. Com o confisco desse dinheiro, o governo russo mudou o destino para o depósito de suas reservas. 

O fato é que o conjunto de medidas tomadas pela administração da Rússia, especialmente o fortalecimento de relações com a China (tem várias outras, como a aproximação com o Irã), acabou tornando quase nulo o efeito das sanções impostas à Rússia. A economia do país cresceu 4,1% no ano passado, por exemplo, quase 50% acima do crescimento mundial. Alguns setores, como a Indústria de Defesa e Construção e Tecnologia da Informação, que apresenta grande demanda por trabalho, tem puxado inclusive ganhos reais dos salários, no mercado de trabalho como um todo. O salário-mínimo cresceu 18,5% em termos nominais e 8,22% reais (acima da inflação), no ano passado. Para uma taxa de desemprego médio na União Europeia de 5,8%, a taxa na Rússia gira em torno de 2,3%, que é praticamente uma taxa de pleno emprego. 

A aliança entre China e Rússia, e por consequência o fortalecimento do BRICS, tende a alterar estruturalmente o poder do imperialismo, comandado pelos EUA, no mundo. O dólar perde força em boa parte do globo e há um deslocamento de cadeias industriais. Além disso, a influência política e de estabelecimento de normas, dos EUA, tende a diminuir pelo conjunto de erros cometidos nos últimos anos. Parceiros tradicionalmente muito ligados aos EUA (Arábia Saudita, Índia, Turquia), começam a agir com mais independência. Nos dias 4 e 5 de dezembro, por exemplo, no Encontro de Cúpula Rússia–Índia, realizado em Nova Delhi, os presidentes dos dois países trataram de uma pauta extensa, que abrangeu temas como: expansão comercial massiva, fornecimento garantido de petróleo russo, maior cooperação militar e defesa, aceleração do uso de moedas nacionais, intensificação da migração indiana para a Rússia, aceleração do corredor logístico Índia–Irã–Rússia e fortalecimento da parceria estratégica em energia, defesa e economia. 

Para os países imperialistas, especialmente para os EUA, a aliança China–Rússia representa uma grande ameaça estrutural, um desafio direto à atual ordem vigente no mundo. É difícil imaginar que essa transição para uma nova ordem ocorra sem uma reação muito violenta dos países imperialistas. Deste fenômeno, há sinais no mundo todo.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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