Em entrevista concedida ao cientista político Ian Bremmer, o conselheiro para segurança nacional do governo norte-americano, Jake Sullivan pintou um cenário otimista para os ucranianos. Para ilustrar a suposta crise na Rússia, Sullivan fez uma analogia nem tão descabida, dadas as recentes declarações do futuro presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
“Se eu tivesse dito a vocês três anos atrás que Joe Biden iria anunciar uma operação militar especial para tomar Ottawa em uma semana e, três anos depois, ele estivesse nos campos de trigo de Manitoba perdendo milhares de soldados por mês, com inflação acima de 10% e taxas de juros nos Estados Unidos acima de 20%, 600.000 americanos mortos ou feridos, e nós avançando lentamente, cidadezinha canadense por cidadezinha canadense […] você não estaria aqui dizendo: “Uau, os Estados Unidos estão realmente vencendo essa guerra em grande estilo. Isso é ótimo para os Estados Unidos.”
Sullivan prossegue para dizer que a situação ucraniana não é muito favorável , caracterizando o conflito como um impasse, mas isso só é possível graças à manipulação grotesca dos fatos. Reportagem recente do portal Kyiv Independent citou o secretário de Defesa norte-americano, Lloyd Austin, que fala em mais de 700 mil mortos e feridos do lado russo desde fevereiro de 2022, próximo da cifra de Sullivan. A mesma matéria aponta 43 mil mortos e 370 mil feridos do lado ucraniano.
Assim têm sido as “vitórias” ucranianas, no terreno da propaganda. Finalmente, se um dos lados do embate tem quase o dobro de baixas, sendo um país mais populoso e militarmente mais capacitado, como poderia o confronto ser um impasse? E como poderiam os russos terem conquistado em outubro deste ano mais território do que em qualquer outro mês do conflito, segundo o próprio The New York Times? Vejamos o que realmente ocorreu em 2024.
Propaganda e realidade
O ano começou com uma importante vitória russa na província de Donetsk, integrada à Federação Russa desde o ano passado. Ao final de fevereiro, as Forças Armadas russas, apoiadas pelas milícia popular do Donetsk, conseguiram conquistar a cidade de Avdiivka, um dos assentamentos ucranianos mais fortificados na região. Era um ponto estratégico para que as forças ucranianas mantivessem pressão sobre a cidade de Donetsk, capital da província.
E o ano termina com a conquista, anunciada no último dia 29, de Novotroitskoie, pequena cidade localizada 60km a oeste de Avdiivka. A vitória coloca as forças russas a pouco mais de 20 km da fronteira que separa Donetsk da província de Dnipropetrovsk, na Ucrânia. Segundo reportagem de dezembro publicada pelo jornal The Moscow Times, as Forças Armadas russas teriam conquistado 880km2 de território apenas este ano. O ritmo pode parecer lento para quem acompanha a guerra do conforto de sua casa, mas demonstra um sólido controle russo da situação, que dita o ritmo no campo de batalha.
Do lado ucraniano ocorreram apenas operações que dão aparência de sucesso para o público, mas não têm grandes consequências militares. No início de agsoto, as Forças Armadas da Ucrânia aventuraram-se a invadir o território russo, a província de Kursk. Os ucranianos avançaram rapidamente e anunciaram a captura de 1.000km2 de uma região esparsamente povoada e tudo o que conseguiram foi aterrorizar a população civil local, estratégia desesperada que visa minar a popularidade do presidente russo Vladimir Putin. Em que pese o “sucesso” inicial do ataque, a situação já se encontra sob controle e, segundo o portal russo Sputnik News, o lado ucraniano chegou a perder 400 soldados em um único dia de combate neste mês de dezembro. Nenhum alvo estratégico foi atingido ou conquistado com essa operação.
O perfil desse avanço ucraniano se assemelha ao atentado contra o Crocus City Hall, em Moscou. O ataque que matou 144 e feriu 500 civis foi reivindicado pelo Estado Islâmico de Coraçone, mas segundo as autoridades russas, houve envolvimento ucraniano. O padrão se repete tanto com o assassinato do Tenente-General Igor Kirilov em Moscou, ocorrido duas semanas atrás, como com os ataques realizados em Cazã com drones não-tripulados, ambos assumidamente orquestrados pela Ucrânia.
Do lado russo, em resposta aos bombardeios ucranianos valendo-se de armamento de alta tecnologia, como o sistema de mísseis norte-americano ATACMS, foi revelado o poder destrutivo do míssil Oreshinik, hipersônico. Em pronunciamento público, após uso do míssil em território ucraniano, Putin desafiou a OTAN para um duelo tecnológico dos sistemas antiaéreos ocidentais contra o Oreshinik.
A declaração é um reconhecimento do verdadeiro caráter do embate, na realidade entre a OTAN, o imperialismo, e a Rússia. A Ucrânia atua apenas como bucha de canhão das potências imperialistas que pouco se importam com as centenas de milhares de vidas ucranianas sacrificadas num campo de batalha absolutamente desigual. O uso do sistema ATACMS foi outro evento significativo porque, segundo especialistas em tecnologia militar, o equipamento não pode ser acionado sem um operador norte-americano com credenciais para acessar os sistemas de informação dos Estados Unidos responsáveis pela aquisição de alvo. Em outras palavras, o ataque “ucraniano” foi um ataque norte-americano contra o território russo lançado a partir da Ucrânia.
“Democracia” vs. Autocracia
Para o povo dos países que sustentam o já exausto exército ucraniano, chefes de Estado recorrem à velha oposição entre “democracia” e regimes “autocráticos” como seria o russo. O discurso busca causar empatia na população que vê seus recursos públicos serem direcionados para um conflito que pouco lhes diz respeito.
Dois eventos realizados este ano, porém, dificultaram ainda mais a sustentação dessa campanha. O primeiro foi a vitória de Vladimir Putin nas eleições presidenciais em março deste ano, com avassaladores 88% dos votos. Naturalmente, a imprensa burguesa internacional caracterizou o pleito como mera encenação, mas tal encenação sequer ocorreu na Ucrânia. Desde abril deste ano, Vladimir Zelensqui governa com mandato expirado. Como se não bastasse a influência de milícias abertamente nazistas no governo, um presidente sem aval popular sustenta uma guerra impopular sem perspectiva de vitória. Isso seria um regime democrático.
A “democracia” do regime ucraniano é cada vez mais visível no regime político de seus patrocinadores. Rishi Sunak, ex-primeiro-ministro britânico, do Partido Conservador, foi substituído por Keir Starmer, do Partido Trabalhista, ambos ferrenhos apoiadores da Ucrânia à despeito da impopularidade da posição dentro do próprio país. O partido de Starmer conquistou cerca de dois terços do Parlamento com apenas um terço dos votos, atualizando as noções de democracia para o público britânico.
Na França, Emmanuel Macron, que em maio anunciou que estaria disposto a enviar tropas francesas à Ucrânia, perdeu as eleições parlamentares que ele próprio convocou. À despeito da vitória da coalizão de esquerda, seguida da extrema-direita em segundo lugar, Macron indicou um primeiro-ministro de sua ala política, ignorando a falência de sua popularidade. Gabriel Attal já caiu, dando lugar a um novo indicado, François Bayrou, que não deve resolver a crise de legitimidade do governo francês.
Olaf Scholz, chanceler alemão, que manteve o compromisso do envio de armas à Ucrânia e autorizou uso de mísseis alemães contra o território russo ao mesmo tempo que os Estados Unidos, em maio, viu seu governo colapsar no final do ano. Novas eleições estão programadas para o início de 2025.
Finalmente, nos Estados Unidos, Joe Biden, que conseguiu aprovar um pacote de auxílio de US$ 61 bilhões para a Ucrânia e abril de 2024, somando-se às dezenas de bilhões já enviados até então, viu seu partido ser derrotado por Donald Trump, que volta ao comando da principal potência imperialista em 20 de janeiro de 2025. Não é certo se Trump alterará a política belicista norte-americana de forma significativa, mas sua campanha teve como um dos temas principais a saída negociada da guerra da OTAN contra a Rússia.
Insustentável
Este ano talvez seja marcado pela falência da propaganda imperialista em torno da Ucrânia. Em fevereiro morreu Alexander Navalny, opositor de Putin alçado a líder da oposição pela imprensa internacional. Chegamos ao final do ano e não se fala mais nele ou em sua esposa, herdeira de seu suposto legado político. Em março, o Oscar de melhor filme documentário foi dado “20 dias em Mariupol”, mas curiosamente, mais e mais ucranianos retornam à cidade hoje controlada pela Rússia por conta das condições de vida nas regiões controladas pela Ucrânia. Segundo matéria publicada em novembro deste ano no portal RBC-Ukraine, cerca de 30% dos residentes de Mariupol que deixaram a cidade no início da ocupação, retornaram. “Primeiramente, isso se deve à propaganda russa e à falta de moradia própria. As pessoas não têm onde morar e não conseguem restaurar as condições que tinham antes do início da invasão em larga escala, então são forçadas a retornar à ocupação”, declarou Vadim Boychenko, antigo prefeito ucraniano da cidade, à reportagem.
Soma-se a isso o colapso da taxa de natalidade e o aumento da taxa de mortalidade na Ucrânia. Segundo relatório da própria CIA, o país enfrenta a menor taxa de natalidade do mundo (tendência que já existia, exarcerbada pelo conflito) e a maior taxa de mortalidade. Em meio a esse colapso demográfico, congressistas norte-americanos pressionam o governo ucraniano pela redução da idade de recrutamento de 25 para 18 anos, o que colocaria em risco a própria integridade do país.
Com a propaganda cada vez menos convincente, e apoio cada vez mais insustentável politicamente, o cenário para o regime ucraniano e para seus patrocinadores é fúnebre. É possível que haja alguma aventura militar como Kursk ou como a autorização do uso do ATACMS por Biden – ordem dada após a derrota eleitoral dos democratas -, mas dada a atual tendência, uma vitória russa parece próxima. Quem sabe à tempo da comemoração dos 80 anos da vitória contra os nazistas, em maio de 2025.