Europa

Uma análise em que não existe classe operária

O crescimento da extrema direita é inevitável? A classe operária não possui iniciativa própria e está a reboque de uma esquerda falida? A análise dos que não veem a luta de classes

Na última quarta-feira, 10 de julho, o portal progressista Brasil 247 publicou uma coluna do jornalista Marcus Atalla intitulada “A divisão entre partidos de direita e esquerda perdeu o sentido”. Com o artigo, Atalla busca desenvolver outro, do economista Michael Hudson (publicado originalmente no portal do próprio, em inglês), aplicando a análise, naquele utilizado a respeito da Europa, para a América Latina. 

Comentando sobre as eleições na Inglaterra, com vitória da ala direita (neoliberal e pró-guerra) do Partido Trabalhista, — se poderia até mesmo dizer, de uma ala do Partido Conservador dentro do primeiro — Hudson denuncia os partidos tradicionais, das chamadas centro-direita e centro-esquerda, afirmando-os com diferenças meramente marginais. Acusa-os corretamente de apoiar a doutrina econômica neoliberal, a política de guerra da OTAN, o alinhamento automático aos EUA, ainda que com prejuízos internos.

Apontando a falência do status quo, o economista ressalta o caráter de protesto dos recentes resultados eleitorais na Itália, França e Alemanha, e as projeções para a vindoura eleição nos EUA. O crescimento e maior vitória política nesses países é da extrema direita, por ele chamada de nacionalista populista, que se opõe às diretrizes da OTAN, à guerra na Ucrânia e ao isolamento da Rússia.

Hudson denuncia todos os tradicionais partidos da esquerda, à exceção do recém-fundado Aliança Sahra Wagenknecht, na Alemanha, uma esquerda que se opõe à guerra da OTAN contra a Rússia. 

“O que é chamado de ‘extrema-direita’ está apoiando (pelo menos na retórica de campanha) políticas que costumavam ser chamadas de ‘esquerda’, opondo-se à guerra e melhorando as condições econômicas do trabalhador e dos fazendeiros – mas não as dos imigrantes. […]

“A antiga divisão entre partidos de direita e esquerda perdeu o sentido. A recente ascensão de partidos descritos como ‘extrema-direita’ reflete a ampla oposição popular ao apoio dos EUA/OTAN à Ucrânia contra a Rússia, e especialmente às consequências desse apoio para as economias europeias.”

Aqui nós temos uma conclusão precipitada. De fato, a extrema direita adotou políticas tradicionalmente de esquerda, com críticas às instituições e à política tradicional, inclusive a medidas econômicas, contudo, essa sempre foi a forma de a extrema direita crescer no cenário político em períodos de crise. A janela para esse crescimento vem justamente da aliança da esquerda ao setor tradicional da direita, tornando a oposição ao regime decadente num espaço vazio, então ocupado pela extrema direita. Esse alinhamento da esquerda também não é recente, como exemplificado no apoio da esquerda às políticas beligerantes na Primeira Guerra Mundial, que levou à falência da Segunda Internacional Comunista.

O que há de novo seria o nível a que chega esse contraste, com a extrema direita quase fora do controle do setor principal do imperialismo, e um amplo setor da esquerda completamente absorvido por ele. A oposição à guerra contra a Rússia por parte da extrema direita é talvez sem precedentes, uma oposição direta ao imperialismo, enquanto a esquerda se ocupa de uma política superficial, identitária, segundo a qual Putin seria “conservador e homofóbico”.

A matéria, porém, passa a afirmações descoladas da realidade, e a apontamentos que perdem o sentido por falta de um norte analítico.

“O que acaba sendo uma ruptura radical com as normas passadas é a Europa seguindo a transformação da OTAN em uma aliança defensiva para uma aliança ofensiva, mantendo as tentativas dos EUA em preservar seu domínio unipolar dos assuntos mundiais.”

A OTAN, desde seu início, foi uma aliança de tipo militar ofensivo contra a URSS e depois a Rússia. Sua expansão ao leste se deu de maneira constante, chegando agora às portas da Rússia, na Ucrânia, como indicado pelo mapa a seguir:

O apontamento parece romper com o sentido anterior do texto, mas o que há é a tentativa de enquadrar o imperialismo europeu como vítima da política dos EUA, quando em realidade são aliados próximos e o foram em todas as últimas guerras no planeta, como no Iraque e no Afeganistão. Então, a limitação se torna clara ao não utilizar a luta de classes, o movimento do imperialismo, como eixo da análise:

“Após a Segunda Guerra Mundial, o internacionalismo prometeu um mundo pacífico. As duas Guerras Mundiais foram atribuídas a rivalidades nacionalistas. Elas deveriam acabar, mas em vez do internacionalismo acabar com as rivalidades nacionais, a versão ocidental que prevaleceu com o fim da Guerra-Fria viu um bloqueio cada vez mais nacionalista dos Estados Unidos na Europa e outros países satélites contra a Rússia e o resto da Ásia. O que se apresenta como uma ‘ordem baseada em regras’ internacional é aquela em que diplomatas dos EUA definem e mudam as regras para refletir os interesses dos EUA, enquanto ignoram o direito internacional e exigem que os aliados de Washington sigam a liderança dos EUA na Guerra Fria.

“Isso não é internacionalismo pacífico. É uma aliança militar unipolar dos EUA levando à agressão militar e sanções econômicas para isolar a Rússia e a China. Ou, mais precisamente, para isolar os aliados europeus e outros de seu antigo comércio e investimento com a Rússia e a China, tornando esses aliados mais dependentes dos Estados Unidos.”

Hudson estabelece um contraste “nacionalismo x internacionalismo”, o que não faz qualquer sentido. As guerras mundiais foram causadas por disputas entre setores do imperialismo. Mais que isso, o internacionalismo pacífico apontado por Michael Hudson ignora, por exemplo, o estabelecimento de “Israel” em 1948 pela ONU, ou a guerra do Vietnã.

A Europa, ou melhor, o bloco imperialista europeu, teve participação direta e ativa em todas as guerras, e não por uma mera coação dos EUA, pelo contrário. O imperialismo dos EUA socorreu o imperialismo europeu onde este não teve condições de se impor, já em decadência, como no Vietnã, onde a França foi derrotada. Pela fraqueza do imperialismo europeu, ele acabou se sustentando a reboque do imperialismo norte-americano.

“Os partidos ‘centristas’ não estão produzindo estabilidade, mas encolhimento econômico à medida que a Europa se torna um satélite da política dos EUA e seu antagonismo às economias do BRICS. […] Essa fratura global da ordem mundial unipolar dos Estados Unidos está permitindo que os partidos antieuro se apresentem não como extremistas, mas como aqueles que buscam restaurar a prosperidade perdida e a autossuficiência diplomática da Europa – de uma forma anti-imigrante de direita, com certeza. Essa se tornou a única alternativa aos partidos pró-EUA, agora que não há mais esquerda real.”

Esta é outra conclusão precipitada por parte do economista. O fato de não haver uma esquerda real, ligada à classe operária, não é um fato dado e eterno, mas parte de um processo de desenvolvimento da situação política. Conforme se desmoraliza a novos e mais rebaixados níveis a esquerda institucional nesses países, frente à crise, maior se torna a tendência de ruptura total com ela pela classe operária, e a constituição de um partido operário. É o que vemos na Inglaterra, com o golpe contra Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista. As peças estão todas no lugar para a formação de um novo partido de esquerda, em oposição ao imperialismo representado por Keir Starmer, atual presidente do Partido Trabalhista.

A extrema direita, como bem coloca Hudson, é demagógica, e direciona as ansiedades sociais dos trabalhadores, frente à crise, aos imigrantes, um setor ainda mais explorado da população. O que ela impulsiona é um choque, uma divisão entre os trabalhadores, logo, não é alternativa alguma. Além disso, conforme deixe de ser oposição e se torne situação, ela opera uma mudança política e tem que se alinhar ao imperialismo, como fica o exemplo de Giorgia Meloni.

Até aqui, polemizamos com o texto de Michael Hudson, citado pelo colunista do Brasil 247, o jornalista Marcus Atalla. Vejamos o que ele tem a dizer:

“Na Argentina, depois do austero-privatista neoliberal Mauricio Macri, em consequência, elegeu-se o centro-esquerda, Alberto Fernández, que mitigou, mas não rompeu com a austeridade neoliberal. Como resposta elegeu-se a extrema-direita, Javier Milei Motosserra. No Brasil, após o golpe em que colocou na presidência Temer e a Ponte para o Futuro neoliberal, elegeu-se a extrema-direita, Bolsonaro. Em consequência, Lula foi eleito em 2022 graças ao seu histórico e promessas eleitorais.”

Em primeiro lugar, Atalla desconsidera boa parte da política latino-americana, mais especificamente, no que concerne ao golpe de Estado. Na Argentina, Alberto Fernández foi candidato fruto de uma capitulação do peronismo, que não lançou como candidata Cristina Kirchner. Enquanto isso, no Brasil, a eleição de Bolsonaro em 2018 ocorreu apenas com o golpe da retirada ilegal de Lula da eleição, então franco favorito.

Apesar de todo o cenário aparentemente semelhante, a esquerda latino-americana ainda possui figuras profundamente ligadas ao movimento popular na esquerda. Caracterizá-la como uma centro-esquerda ao estilo europeu é um erro grotesco, e ignora a crise que tais figuras geram no cenário político de seus países e no continente. Ao passo em que a esquerda europeia é completamente absorvida pelo imperialismo (com a exceção de Jeremy Corbyn, por exemplo, expulso de seu partido), não se pode dizer o mesmo de figuras como Lula, Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, perseguidos na última década e até hoje.

“Em que pese a sabotagem do sem votos Roberto Campos Neto em seu Banco Central independente e a melhora numérica econômica, o governo de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores foi ainda mais ao centro tornando-se mais um gestor do neoliberalismo-austericida através das políticas adotadas pelo ministro da fazenda Fernando Haddad e equipe. […]

“O roteiro está sendo seguido à risca no Brasil, deu certo na Argentina, está dando certo no Chile, nos EUA e Europa, qual a razão de se acreditar que no Brasil o resultado será diferente.”

Fato, o governo Lula não tem aplicado seu programa, fruto da pressão que vem sofrendo do imperialismo, o que sacrifica sua popularidade. Apesar disso, Lula não é Cristina Kirchner, nem a esquerda social-democrata europeia, é um representante legítimo da classe operária, e em determinada medida responde a ela, fruto dessa ligação. Conforme se aprofunde a crise, e os trabalhadores intensifiquem sua mobilização, resta ver se o dirigente repetirá os erros da esquerda pequeno-burguesa, e cometerá um suicídio político, ou, como ao fim da ditadura, se colocará à frente do movimento, e enfrentará o imperialismo.

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