HISTÓRIA DA PALESTINA

Trótski e a questão judaica

Um dos dirigentes da Revolução Russa, León Trótski chamava a comunidade judaica a rejeitar o reacionarismo sionista, cujas ilusões representavam uma ameaça "trágica" aos judeus

As posições do Partido da Causa Operária (PCO) sobre a questão Palestina e a erradicação de “Israel” parecem uma voz dissonante no interior da esquerda brasileira, dado as posições que vão do idealismo da defesa dos dois Estados ao apoio explícito ao sionismo. Muito antes do partido trotskista, no entanto, o próprio Leon Trótski (ele próprio, judeu) em seus anos finais debruçou-se sobre a questão judaica, destacando já em 1938 e em meio à febril perseguição promovida pelos nazistas que “a salvação do povo judeu está inseparavelmente ligada à derrubada do sistema capitalista”.

Crítico do sionismo, Trótski caracteriza a Palestina como “uma trágica miragem”, ao mesmo tempo, em que outro projeto similar, o Birobidjã [colônia judaica organizada pelo stalinismo na Sibéria] é criticado como “uma farsa burocrática”. Antevendo um final desastroso para os judeus em caso de adesão aos planos sionistas, o organizador da Revolução Russa profetiza que “o desenvolvimento futuro dos eventos militares pode transformar a Palestina em uma armadilha sangrenta para vários milhares de judeus”.

Abaixo, uma carta retirada dos arquivos pessoais de Trótski e disponível em inglês na seção inglesa do sítio marxists.org sob o título “On the Jewish Problem”, que reúne textos escritos entre 1937 e 1940. Conforme o sítio, a carta encorajava os judeus norte-americanos a enfrentarem a ameaça galopante da ascensão do antissemitismo e do fascismo nos EUA aderindo à Quarta Internacional e à luta revolucionária do proletariado, sendo esse o único caminho seguro para superar a crise da época de maneira consequente.

Prezado amigo,

Padre Coughlin, que aparentemente tenta demonstrar que o idealismo moral absoluto não impede o homem de ser o maior canalha, declarou pelo rádio que no passado eu teria recebido enormes somas de dinheiro para a revolução da burguesia judaica nos Estados Unidos. Já respondi na imprensa que isso é falso. Eu não recebi tal dinheiro, não porque teria recusado apoio financeiro para a revolução, mas porque a burguesia judaica não ofereceu esse apoio. A burguesia judaica permanece fiel ao princípio: não dar, mesmo agora quando sua cabeça está em jogo. Sufocando em suas próprias contradições, o capitalismo desfere golpes enfurecidos contra os judeus, e parte desses golpes recai sobre a burguesia judaica, apesar de todo seu passado ‘serviço’ ao capitalismo. Medidas de natureza filantrópica para refugiados tornam-se cada vez menos eficazes em comparação com a dimensão gigantesca do mal que pesa sobre o povo judeu.

Agora é a vez da França. A vitória do fascismo neste país significaria um grande fortalecimento da reação e um crescimento monstruoso do violento antissemitismo em todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos. O número de países que expulsam os judeus cresce sem cessar. O número de países capazes de aceitá-los diminui. Ao mesmo tempo, a intensificação da luta se agrava. É possível imaginar sem dificuldade o que espera os judeus no mero desencadeamento da futura guerra mundial. Mas mesmo sem guerra, o próximo desenvolvimento da reação mundial significa, com certeza, a extinção física dos judeus.

A Palestina aparece como uma trágica miragem, Birobidjã como uma farsa burocrática. O Kremlin recusa-se a aceitar refugiados. Os congressos ‘antifascistas’ de velhinhas e jovens carreiristas não têm a menor importância. Agora, mais do que nunca, o destino do povo judeu — não apenas o seu destino político, mas também o físico — está indissociavelmente ligado à luta emancipadora do proletariado internacional. Somente a mobilização audaciosa dos trabalhadores contra a reação, a criação de milícias operárias, a resistência física direta aos bandos fascistas, o aumento da autoconfiança, da atividade e da audácia de todos os oprimidos podem provocar uma mudança na relação de forças, deter a onda mundial do fascismo e abrir um novo capítulo na história da humanidade.

A Quarta Internacional foi a primeira a proclamar o perigo do fascismo e a indicar o caminho da salvação. A Quarta Internacional conclama as massas populares judaicas a não se iludirem, mas a enfrentarem abertamente a realidade ameaçadora. A salvação reside apenas na luta revolucionária. Os ‘nervos’ da luta revolucionária, assim como na guerra, são os fundos. Com os elementos progressistas e perspicazes do povo judeu repousa a obrigação de vir em auxílio da vanguarda revolucionária. O tempo urge. Um dia agora é equivalente a um mês ou até a um ano. O que você faz, faça-o rapidamente!

22 de dezembro de 1938

A tentativa de resolver a questão judaica por meio da migração dos judeus para a Palestina agora pode ser vista pelo que é, uma zombaria trágica do povo judeu. Interessado em conquistar a simpatia dos árabes, que são mais numerosos que os judeus, o governo britânico alterou drasticamente sua política em relação aos judeus, e efetivamente renunciou à sua promessa de ajudá-los a fundar o seu ‘lar próprio’ em uma terra estrangeira. O desenvolvimento futuro dos eventos militares pode transformar a Palestina em uma armadilha sangrenta para vários milhares de judeus. Nunca foi tão claro como é hoje que a salvação do povo judeu está inseparavelmente ligada à derrubada do sistema capitalista.

Julho de 1940

Além da carta acima, o revolucionário russo já exilado no México respondeu a questionamentos feitos pela imprensa judaica, também exortando os judeus a não aceitarem as soluções sionistas, novamente apresentadas como meras ilusões: “os fatos de cada dia nos mostram que o sionismo é incapaz de resolver a questão judaica”, diz o revolucionário, voltando novamente a prever um desfecho “cada vez mais trágico e ameaçador” para “o conflito entre judeus e árabes na Palestina”, apresentada como uma “faca de dois gumes” para os judeus.

Mantendo sua crítica ao sionismo, Trótski rejeita o projeto stalinista do Birobidjã como uma solução e chama os judeus a não aceitarem a ideia absurda de que “a questão judaica possa ser resolvida no âmbito do capitalismo decadente e sob o controle do imperialismo britânico”. Também nessa entrevista, o russo destaca a ligação direta entre a sorte do povo judeu e a de todos os povos oprimidos pela ditadura global, “indissoluvelmente ligada”, diz, “à emancipação completa da humanidade”. Abaixo, a resposta de Trótski, também extraída do sítio marxists.org, organizado na mesma coletânea supracitada:

Antes de tentar responder às suas perguntas, devo adverti-lo de que, infelizmente, não tive a oportunidade de aprender a língua judaica, que, aliás, só se desenvolveu desde que me tornei adulto. Não tive, e não tenho, a possibilidade de acompanhar a imprensa judaica, o que me impede de dar uma opinião precisa sobre os diferentes aspectos de um problema tão importante e trágico. Portanto, não posso reivindicar qualquer autoridade especial ao responder às suas perguntas. No entanto, vou tentar dizer o que penso sobre o assunto.

Durante a minha juventude, eu inclinava mais para a previsão de que os judeus de diferentes países seriam assimilados e que a questão judaica, assim, desapareceria de maneira quase automática. O desenvolvimento histórico do último quarto de século não confirmou essa perspectiva. O capitalismo decadente, em toda parte, se voltou para um nacionalismo exacerbado, parte do qual é antissemitismo. A questão judaica foi mais destacada no país capitalista mais altamente desenvolvido da Europa, na Alemanha.

Por outro lado, os judeus de diferentes países criaram sua imprensa e desenvolveram o idioma iídiche como um instrumento adaptado à cultura moderna. Deve-se, portanto, contar com o fato de que a nação judaica se manterá por uma época inteira. Agora, a nação normalmente não pode existir sem um território comum. O sionismo surge dessa ideia. Mas os fatos de cada dia nos mostram que o sionismo é incapaz de resolver a questão judaica. O conflito entre judeus e árabes na Palestina adquire um caráter cada vez mais trágico e ameaçador. Eu não acredito de maneira alguma que a questão judaica possa ser resolvida no âmbito do capitalismo decadente e sob o controle do imperialismo britânico.

E como, você me pergunta, o socialismo pode resolver essa questão? Nesse ponto, só posso oferecer hipóteses. Uma vez que o socialismo tenha se tornado mestre de nosso planeta, ou pelo menos de suas seções mais importantes, terá recursos inimagináveis em todos os domínios. A história humana testemunhou a época das grandes migrações com base no barbarismo. O socialismo abrirá a possibilidade de grandes migrações com base na técnica e cultura mais desenvolvidas. É evidente que o que está envolvido aqui não são deslocamentos compulsórios, ou seja, a criação de novos guetos para certas nacionalidades, mas deslocamentos livremente consentidos, ou melhor, exigidos por certas nacionalidades ou partes delas. Os judeus dispersos que desejarem se reunir na mesma comunidade encontrarão um local suficientemente extenso e rico sob o sol. A mesma possibilidade será aberta para os árabes, assim como para todas as outras nações dispersas. A topografia nacional se tornará parte da economia planejada. Esta é a grande perspectiva histórica que eu enxergo. Trabalhar pelo socialismo internacional significa também trabalhar para a solução da questão judaica.

Você me pergunta se a questão judaica ainda existe na URSS. Sim, ela existe, assim como existem as questões ucraniana, georgiana e até russa lá. A onipotente burocracia sufoca o desenvolvimento da cultura nacional, assim como faz com toda a cultura. Ainda pior, o país da grande revolução proletária está agora passando por um período de profunda reação. Se a onda revolucionária revivificou os mais nobres sentimentos de solidariedade humana, a reação termidoriana agitou tudo o que é baixo, escuro e retrógrado nessa aglomeração de 170 milhões de pessoas. Para reforçar sua dominação, a burocracia não hesita em recorrer, de maneira mal disfarçada, a tendências chauvinistas, acima de tudo às antissemitas. O último julgamento de Moscou, por exemplo, foi encenado com o objetivo mal disfarçado de apresentar os internacionalistas como judeus infiéis e sem lei, capazes de se venderem à Gestapo alemã.

Desde 1925 e, sobretudo, desde 1926, a demagogia antissemita, bem camuflada, inatacável, caminha de mãos dadas com julgamentos simbólicos contra pogromistas confessos. Você me pergunta se a antiga pequena burguesia judaica na URSS foi assimilada socialmente pelo novo ambiente soviético. Estou realmente sem condições de lhe dar uma resposta clara. As estatísticas sociais e nacionais na URSS são extremamente tendenciosas. Elas não servem para apresentar a verdade, mas, acima de tudo, para glorificar os líderes, os chefes, os criadores da felicidade. Uma parte importante da pequena burguesia judaica foi absorvida pelos formidáveis aparatos do Estado, da indústria, do comércio, das cooperativas, etc., sobretudo em suas camadas mais baixas e médias. Esse fato gera um sentimento antissemita, e os líderes o manipulam com habilidade astuta para canalizar e direcionar especialmente contra os judeus o descontentamento existente contra a burocracia.

Sobre Birobidjã, eu não posso oferecer mais do que minhas avaliações pessoais. Eu não estou familiarizado com essa região e muito menos com as condições em que os judeus se estabeleceram lá. Em qualquer caso, pode ser não mais do que uma experiência muito limitada. A URSS sozinha ainda seria muito pobre para resolver sua própria questão judaica, mesmo sob um regime muito mais socialista do que o atual. A questão judaica, repito, está indissoluvelmente ligada à emancipação completa da humanidade. Tudo o mais que é feito nesse domínio só pode ser paliativo e muitas vezes até uma faca de dois gumes, como o exemplo da Palestina mostra.

18 de janeiro de 1937

Neste último artigo, extraído da coletânea “Termidor e antissemitismo” (1937), Trótski diz considerar democrática a reivindicação de um território judeu, porém nos marcos do socialismo, quando a “migração compulsória” pudesse ser substituída por uma “migração voluntária”. Antes do estabelecimento da federação socialista internacional, porém, a solução à questão judaica apresentada pelo sionismo é descrita pelo fundador da Quarta Internacional como “utópica e reacionária”.

Criticando também os stalinistas, Trótski destaca que “‘os amigos da URSS’ estão satisfeitos com a criação de Birobidjã”, mas reforça: “Birobidjã não pode deixar de refletir todos os vícios do despotismo burocrático”. Abaixo, as considerações do revolucionário responsável por organizar o Exército Vermelho:

Alguns supostos ‘especialistas’ me acusaram de ‘subitamente’ levantar a ‘questão judaica’ e de pretender criar algum tipo de gueto para os judeus. Só posso encolher os ombros com pena. Eu vivi toda a minha vida fora dos círculos judaicos. Eu sempre trabalhei no movimento operário russo. Minha língua materna é o russo. Infelizmente, eu nem aprendi a ler hebraico. Portanto, a questão judaica nunca ocupou o centro da minha atenção.

Mas isso não significa que eu tenha o direito de ser cego para o problema judaico, que existe e exige uma solução. ‘Os amigos da URSS’ estão satisfeitos com a criação de Birobidjã. Eu não vou parar neste ponto para considerar se foi construído sobre uma base sólida e que tipo de regime existia lá (Birobidjã não pode deixar de refletir todos os vícios do despotismo burocrático). Mas nenhum indivíduo progressista pensante se oporá ao designar um território especial para aqueles cidadãos que se consideram judeus, que usam o idioma judeu de preferência a todos os outros e que desejam viver como uma massa compacta.

Isso é ou não é um gueto? Durante o período da democracia soviética, da migração completamente voluntária, não poderia haver falar de guetos. Mas a questão judaica e a maneira como ocorreram os assentamentos de judeus assumem um aspecto internacional. Não estamos corretos em dizer que uma federação socialista mundial terá que possibilitar a criação de um Birobidjã para aqueles judeus que desejam ter sua própria república autônoma como arena para sua própria cultura?

Presume-se que uma democracia socialista não recorrerá à assimilação compulsória. Pode muito bem ser que, em duas ou três gerações, as fronteiras de uma república judaica independente, assim como de muitas outras regiões nacionais, sejam apagadas. Eu não tenho tempo nem desejo de meditar sobre isso. Nossos descendentes saberão melhor do que nós o que fazer. Eu tenho em mente um período histórico transitório quando a ‘questão’ judaica como tal ainda é aguda e exige medidas adequadas de uma federação mundial de Estados operários.

Os mesmos métodos de resolver a questão judaica que, sob o capitalismo decadente, terão um caráter utópico e reacionário (o sionismo) terão, sob o regime de uma federação socialista, um significado real e salutar. Isso é o que eu quero destacar. Como poderia qualquer marxista ou mesmo qualquer democrata consistente se opor a isso?

1937

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