“Toda Nudez Será Castigada” foi encenada pela primeira vez no Teatro Serrador do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1965. Teve como diretor Ziembiński, um ator e diretor polonês naturalizado no Brasil, com quem Nelson Rodrigues trabalhou em diversas outras peças.
Talvez a mais importante delas foi “Vestido de Noiva” (1943) pelo seu caráter pioneiro e experimental, quando pela primeira vez propôs a constituição de cenário em que se intercala de forma concomitante o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano da memória. A composição não tem um caráter linear e cada plano vai sucedendo o outro sem uma ordem cronológica, como se o espectador estivesse diante de um quadro, com a realidade e o imaginário justapostos, e não propriamente uma história com começo, meio e fim.
Neste sentido, pode-se dizer que o diretor polonês deu a sua contribuição, em conjunto com Nelson Rodrigues, para a inauguração do Teatro Moderno no Brasil, porquanto, até então, a atividade cênica era restrita ao recreativo e ao folhetinesco, sem a pretensão de esmiuçar a alma humana e suas contradições, enfrentar temas tabus e/ou propor novas experimentações formais; o teatro até então tinha como horizonte o entretenimento.
“Toda Nudez Será Castigada” serve-se da mesma experimentação formal, ao estabelecer em paralelo ao plano da realidade as memórias da prostituta Geni, gravadas numa fita cassete, pouco antes da sua morte por suicídio. A mensagem é endereçada a um amante da falecida, chamado Herculano e, na medida em que a fita enuncia as recordações do passado, a realidade emerge através de outro plano cênico, ilustrando e dando um fio condutor à história, inicialmente enunciada no registro em fita cassete das recordações de uma suicida.
O erotismo explícito é um dos traços que caracteriza a dramaturgia de Nelson Rodrigues.
Nesta peça em particular, a obscenidade surge como uma força oculta por de trás de um disfarce de castidade. A proposta é a de demonstrar a hipocrisia por detrás do moralismo vigente. A ideia subjacente é a de que os mais impuros são aqueles que se imaginam castos.
Herculano foi um homem dedicado inteiramente à família, sem vícios e vivendo num ascetismo fora do comum. Em toda a sua vida, teve relação sexual apenas com sua mulher, até tornar-se viúvo. Cogita o suicídio, ao ponto de familiares esconderem o seu revolver, já imaginando a tragédia. Ao descobrir a arma, Herculano aponta o cano na boca mas não segue adiante com o seu propósito de ceifar a própria vida. Numa conversa com o médico da família, revela posteriormente ter interrompido o plano ao associar o cano do revolver em sua boca com uma atividade sexual. Até naquele momento extremo, é traído por sua própria castidade.
Em todo o caso, o viúvo faz uma promessa solene ao seu filho Serginho, dizendo que jamais tocaria em nenhuma outra mulher em respeito à memória da falecida esposa.
O irmão de Herculano, chamado Patrício, é movido pelo mesmo ódio bíblico de Caim e Abel. Tem o desejo de vingança desde quando se tornou um pária na família por não adotar a mesma higidez moral de seu irmão. Quando criança, Patrício foi flagrado pelas tias travando suas primeiras relações com uma cabra, tornando-se, e reconhecendo-se desde então, como alguém abertamente obsceno. Seu propósito de vingança é corromper o irmão e desmoralizá-lo perante as tias e o sobrinho Serginho.
Para tanto, convence o irmão a travar relações com Geni, uma prostituta.
HERCULANO (com a voz estrangulada para si mesmo) — Me convidar, ter essa coragem — pra ir à zona!
PATRÍCIO — Não é zona. Rendez-vous de gabarito. E a Geni não é o que você pensa!
HERCULANO — Uma prostituta!
PATRÍCIO — Não vamos fazer um bicho de sete cabeças. Não é, não é como as outras!
HERCULANO (desesperado) — Vagabunda é vagabunda!
patrício — Fez o científico. Com Geni, se pode conversar. Humana, entende? E vou te dizer mais! Não conheci, até hoje, uma mulher mais humana.
HERCULANO (febril) — E está lá por quê?
PATRÍCIO — Sei lá. Azar.
HERCULANO (triunfante) — Vírgula! Assim como se nasce poeta, ou judeu, ou bombeiro — se nasce prostituta!
Através da malícia e da manipulação de Patrício, Herculano capitula. Entrega-se de forma compulsiva ao desejo sexual. Passa 72 horas na casa da prostituta embriagando-se do álcool e saciando toda a lasciva acumulada. Quando dá conta de si e do que aconteceu, revolta-se contra todos e contra si mesmo. Quer enxotar Geni e vingar-se do irmão. Mas depois dessa primeira experiência, não mais consegue conter a concupiscência sexual reprimida. No redemoinho dos seus desejos sexuais, vai abandonando suas crenças, preconceitos e medos. Não consegue se desligar da prostituta conquanto não pode também assumi-la perante a sociedade e a família.
Serginho, ainda mais ligado à mãe falecida do que o pai, descobre o caso envolvendo Geni e fica fora de si. Novamente, a tragédia tem o dedo de Patrício, que é quem revela o segredo sórdido do irmão ao sobrinho. Numa explosão de angústia, Serginho embebeda-se, arranja uma confusão e é preso. Na cadeia, tem a sua virgindade violada após ser estuprado por um “ladrão boliviano”. Revolta-se com o pai, a quem culpa pela sua desgraça e pela desonra da memória da mãe falecida. Posteriormente, tal qual o pai, essa mesma castidade do filho é subvertida na mais completa falta de pudor: a violência sexual que sofreu vira fonte de desejo, ao ponto de buscar o homem que o estuprou para com ele fugir e viver o amor homossexual.
Nessa trama em que ódios ocultos explodem em vinganças terríveis e a castidade é a maior fonte do obsceno, é justamente a prostituta suicida aquela que aponta uma pálida referência de um amor desinteressado. Se num primeiro momento, aproximou-se de Herculano estimulada pelo interesse financeiro, desenvolve por ele um amor sincero. Em relação a Serginho, manifesta uma compaixão incomum, de caráter maternal, por sua tragédia, inobstante o ódio que o adolescente lhe devota. Ao lado da desagregação da castidade de Herculano e Serginho, brota a ternura desinteressada da prostituta.
O trágico da peça se revela pelo efeito desagregador das tensões sexuais, especialmente àqueles que se pretendem puros. E, àquela prostituta difamada, cujo corpo pertenceu a tantos homens, não lhe restou um só coração com que compartilhasse o seu amor, sobrando-lhe a morte pelo suicídio.
E assim, termina a peça, com as últimas palavras enunciadas por Geni antes da morte:
(Voz gravada de Geni.)
GENI — Teu filho fugiu, sim, com o ladrão boliviano. Foram no mesmo avião, no mesmo avião. Estou só, vou morrer só. (num rompante de ódio) Não quero nome no meu túmulo! Não ponham nada! (exultante e feroz) E você, velho corno! Maldito você! Maldito o teu filho, e essa família só de tias. (num riso de louca) Lembranças à tia machona! (num último grito) Malditos também os meus seios! (A voz de Geni se quebra num soluço. Acaba a gravação. Sons de fita invertida. Iluminada apenas a cama vazia.)
CAI O PANO, LENTAMENTE, SOBRE O FINAL DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO
Brasil e Teatro Moderno
Como mencionado, a importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.
A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço para a experimentação formal, para o irreal e o fantástico dentro das peças, e para a exploração de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.
Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada personagem. A verdade oculta se revela nas situações mais dramáticas.
Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.
Na conjuntura internacional, as peças estão situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido” quando “tudo está prestes a acabar”.