colO governo anunciou, na semana passada, um pacote de corte de gastos obrigatórios, através do qual pretende economizar, em dois anos, R$ 70 bilhões (R$ 30 bilhões em 2025 e R$ 40 bilhões em 2026). Entre as principais propostas do pacote estão a redução do abono salarial e um teto no índice de reajuste do salário-mínimo. Além disso, o governo está propondo eliminar as brechas que burlam o teto dos supersalários no serviço público e reformar a previdência dos militares. Ao mesmo tempo em que anunciou os cortes de gastos obrigatórios, o governo anunciou que enviará ao Congresso Nacional proposta para elevar a faixa de isenção do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil, e que define uma alíquota efetiva de 10% para quem recebe mais de R$ 50 mil por mês. Atualmente, a faixa de isenção do IR vai até R$ 2.259,20 mensais. As principais medidas do pacote, são:
Salário-mínimo: atualmente o salário-mínimo é corrigido pela inflação do ano anterior, mais o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), de dois anos anteriores. Pela proposta está mantida a variação pela inflação, mas a variação pelo PIB, ficará limitada pelo arcabouço fiscal, ou seja, 2,5% reais. Por exemplo, pelo sistema atual, o aumento real previsto do salário-mínimo para 2025 seria de 2,9% (crescimento do PIB de 2023). Com as regras previstas pelo pacote, o salário-mínimo cresceria apenas 2,5% em termos reais, o que daria cerca de R$ 6 menos do que pela regra atual. Pela proposta, quando o PIB for negativo, fica garantido um reajuste de pelo menos 0,6% acima da inflação, que é igual ao piso de variação de gastos do arcabouço fiscal.
Abono salarial – Este benefício é uma espécie de 14º salário para os trabalhadores com carteira assinada que recebem até dois salários-mínimos (R$ 2.824). Este benefício também será prejudicado pelo pacote: ao invés de seguir a política de valorização do salário-mínimo, será corrigido apenas pela inflação do ano anterior. Com isso, gradativamente o benefício valerá menos em múltiplos de salário-mínimo. O governo projeta que, a partir de 1935, equivalerá a um salário-mínimo e meio, ao invés dos dois salários atuais.
Pente-fino no Bolsa Família e no Benefício de Prestação Continuada (BPC) – Estes benefícios são fundamentais para os brasileiros pobres. O BPC, por exemplo, garante um salário-mínimo para as pessoas deficientes e idosos pobres. A investigação pretende cortar os benefícios que estejam sendo pagos “indevidamente”. A medida também irá dificultar o acesso a ambos os benefícios. As medidas previstas de acesso a ambos os benefícios são duríssimas, passando por prova de vida anual, biometria, reconhecimento facial, e por aí afora.
Gastos com pessoal no governo federal – A partir de 2027, um gatilho de reenquadramento impedirá aumento real acima de 0,6%, se as despesas discricionárias (não obrigatórias) do governo caírem de um ano para o outro.
O pacote é abrangente, há uma série de outras proposta ainda tratando de emendas parlamentares, isenções fiscais, novo Vale Gás e Pé-de-Meia, educação em tempo integral, Lei Aldir Blanc, concursos públicos, subsídios e subvenções, criação de despesas, supersalários e outras. Como mencionado, além do pacote de contenção de gastos, o governo enviou ao Congresso o projeto de isenção do Imposto de Renda (IR) aos contribuintes que ganhem até R$ 5 mil. Mas essa, que é uma proposta modesta, é provável que não passe no Congresso do jeito que está, ou seja, deverá ser bastante alterada para pior.
O governo vinha sendo pressionado há meses pelo sistema financeiro e o grande capital, em geral, para fazer o “ajuste fiscal”, que traduzido em bom português, significa cortar gastos sociais e acabar com a política de ganhos reais do salário-mínimo. Com o pacote de contenção fiscal, o ajuste exigido pelos capitalistas foi encaminhado, ainda que com o paliativo da isenção do IR, que pode não se materializar, como foi observado. A imprensa comercial continua inundada por “especialistas” que bradam contra os chamados gastos obrigatórios do governo que estariam “avançando fortemente”, em decorrência das despesas previdenciárias, as quais são atreladas ao salário-mínimo. Segundo o próprio ministro Haddad, em entrevistas, “Todas regras mantidas, as despesas obrigatórias vão consumir as despesas discricionárias. Vamos ter de fazer um debate sobre isso”. Essa conclusão é um dos centros do diagnóstico do sistema financeiro.
O governo vinha tão pressionado pelo chamado “mercado”, que, ante um crescimento do PIB acima do esperado no segundo trimestre do ano (1,4%), que permitiu a projeção de uma taxa de crescimento próxima a 3% no ano de 2024 como um todo, teve que ficar justificando que isso não aumentaria a inflação. Poucas vezes se viu um governo se justificar porque o PIB cresceu acima do esperado. Pressionado, o governo parou de criticar inclusive a taxa Selic, que, em termos reais, é a terceira mais elevada do mundo (8,08%), atrás apenas da Turquia (15,18%) e da Rússia (12,19%). Com o detalhe que a Rússia que enfrenta uma guerra contra a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), há quase três anos.
A pressão exercida pela grande mídia e sistema financeiro impede o governo de enfrentar as questões macroeconômicas fundamentais, como é o problema da dívida pública. No acumulado dos oito primeiros meses deste ano, as contas públicas apresentaram um resultado negativo de R$ 86,2 bilhões, o equivalente a 1,14% do PIB. Só que o déficit público é fruto direto dos gastos com a dívida pública: nos primeiros oito meses de 2024, o Brasil torrou R$ 870 bilhões em juros da dívida, impressionantes 7,7% do PIB. Quando se incorporam os juros da dívida pública na conta, no conceito conhecido como resultado nominal, se constata um déficit de R$ 1,11 trilhão nas contas do setor público em doze meses até agosto – o equivalente a 9,8% do PIB.
Para efeito comparativo, as despesas previstas com o Programa Bolsa Família, que impede mais de 55 milhões de brasileiros de morrerem de fome, é de R$ 167,2 bilhões, cerca de 19% do valor que o país irá gastar com alguns milhares de rentistas. Os quase R$ 800 bilhões gastos seriam para os “serviços” da dívida, portanto, incluindo pagamento de juros e amortização da dívida. Mas não existe amortização da dívida. O estoque da dívida só cresce, apesar do Brasil pagar o maior volume de juros em proporção ao PIB, do mundo. A projeção é que a dívida bruta do governo geral, que inclui todos os poderes da União, estados e municípios, deve atingir 76,6% do PIB ao final deste ano. No entanto, supostamente, a dívida cresce por causa dos gastos primários do governo.
Não há discussão adequada no país sobre os gastos com a dívida pública. É como se o “problema fiscal” fosse sinônimo de gastos sociais. O pacote fiscal anunciado impacta os rendimentos dos mais pobres no país (trabalhadores de salário-mínimo, miseráveis que recebem bolsa família, pobres que recebem abono salarial etc.) e não diz uma palavra sobre os extorsivos e ilegítimos pagamentos da dívida pública. Com o pacote, o governo vai tirar bilhões de reais dos trabalhadores que recebem salário-mínimo, para transferir para bancos, fundos de pensão e fundos de investimentos, que detêm a esmagadora maioria do estoque de papéis da dívida.
A equipe do Ministério da Fazenda desconheceria que a questão fiscal é, essencialmente, o problema da dívida pública? Obviamente, não. Trata-se de um problema de correlação de forças. Impossibilitado – e sem disposição – de enfrentar o poderio dos banqueiros, o governo se limita a fazer política econômica, “na margem”, naquilo que está autorizado a fazer. Não há disposição e força para enfrentar as lutas que realmente valem a pena. É mais fácil fazer tudo “direitinho” para agradar às agências de risco (todas ligadas aos banqueiros) e obter o grau de investimento até 2026.
Em 2023, segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, do orçamento geral do governo federal, que computa todas as receitas e todas as despesas e que foi de R$ 4,360 trilhões, a dívida pública comprometeu quase R$ 1,9 trilhão, 43,23% de todas as receitas, conforme se pode ver no Gráfico abaixo. A Auditoria realiza esse estudo utilizando somente informações divulgadas nas páginas oficiais do governo.
No Gráfico, pode-se observar que Saúde ficou com 3,69%, Educação 2,97%, Ciência e Tecnologia, 0,29%, Defesa Nacional, 1,8%, a dívida comprometeu 43,23% do Orçamento. No Brasil, ao contrário do que ocorreu em alguns países desenvolvidos, a receita dos títulos da dívida é gasta com os próprios juros da dívida. E mesmo assim, o estoque da dívida cresce anualmente, ou seja, é um mecanismo de extorsão do esforço produtivo de toda uma nação. Não se faz investimentos com a venda de títulos da dívida, como ocorre em alguns países ricos, é um recurso dirigido exclusivamente para pagar os juros, o que aumenta o estoque da dívida. O pacote fiscal colocou um limitador no ganho real do salário-mínimo, que atualmente é condicionado pelo crescimento da economia (cresce conforme o crescimento do PIB), o que irá impactar milhões de brasileiros, mas nem ao menos se fala no pagamento de juros. No Brasil não se reajusta salário do servidor, não se faz concurso público, se tira dinheiro da educação e da saúde, pouco se investe em prevenção de catástrofes climáticas, se gasta cada vez menos com a previdência, tudo em nome de pagamento de juros infinitos para bancos e especuladores.
Os banqueiros acharam o arrocho proposto pelo pacote, muito tímido. Na semana passada o dólar bateu no patamar acima de R$ 6, pressão direta dos especuladores para aumentar o arrocho do pacote. Ao mesmo tempo, choveram críticas da imprensa comercial e dos economistas ligados aos bancos, de que a mudança no salário-mínimo teria sido insuficiente, o que continuaria a pressionar os gastos discricionários e os investimentos no orçamento federal. Ademais, os bancos estão considerando que a economia prevista para 2026 (R$ 71,9 bilhões), está sendo superestimada. Conforme estimativa do BTG Pactual, a quantia que deve ser economizada nos próximos anos é R$ 26 bilhões inferior à apontada pela equipe econômica do governo.
A previsão é de que a taxa Selic, irá aumentar 0,75 ponto percentual na última reunião do ano, nos dias 10 e 11 de dezembro, próximos. Decisão que não encontra justificativa técnica e é toda baseada em falácias, já que não existe razão para o Brasil praticar taxa real de juros de 8%. Como lembra Maria Lúcia Fatorelli, da Auditoria Cidadão da Dívida, o aumento de 1 ponto percentual na taxa Selic representa, em um ano, custo anual extra de R$55 bilhões com a dívida pública, equivalente à quase 77% do que o governo pretende economizar com o pacote em 2025, tirando renda de milhões de trabalhadores pobres.