Ao longo da última semana, circulou pelas redes sociais um corte de uma entrevista do piloto brasileiro Lucas di Grassi ao portal My News. No trecho, di Grassi relata sua experiência tentando fabricar bicicletas elétricas no Brasil, iniciativa de 2016 hoje abandonada. Como piloto da Fórmula E, de carros elétricos, di Grassi pode observar o barateamento da tecnologia envolvida na produção desses veículos e imaginou que bicicletas elétricas teriam um bom mercado consumidor nos anos seguintes. Nada mais justo, dado que em São Paulo é cada vez mais comum ver bicicletas motorizadas “voando” nas ciclovias em meio aos entregadores de aplicativo que sequer têm a própria bicicleta para trabalhar, dependendo das públicas, do Itaú.
De qualquer forma, a história de sua empresa, a EDG, é um retrato cômico da indústria nacional. Di Grassi percebeu após pesquisa que o material mais adequado para a produção do veículo era uma liga de aço-nióbio. O Brasil é o maior produtor de nióbio do mundo, chega a controlar o mercado. Parece o cenário perfeito, mas não é.
Eis que o País, da cadeia produtiva de uma bicicleta, “não produz nem corrente”, segundo o entrevistado. Célula de bateria? Nem pensar. O sonho de produzir uma bicicleta inteiramente no Brasil, em projeto organizado com engenheiros da Embraer, muito capacitados, já começava torto. Mas havia mais um “desafio”: a carga tributária imposta no Estado de São Paulo. Para viabilizar financeiramente seu empreendimento, valia mais a pena para di Grassi enviar o nióbio para a China, fabricar a maioria das partes da bicicleta no país asiático, trazê-las de volta, enviando-as para Manaus e, na Zona Franca de Manaus, montar o veículo. Tudo isso para escapar dos impostos. Ah, e não levamos em consideração o frete da mercadoria de Manaus para São Paulo, onde há maior poder de compra para adquirir esse tipo de produto. O que depende de transporte rodoviário, caro e demorado.
“Não gero emprego, não gero tecnologia… e também não pago imposto”, declarou o piloto-empresário apenas para lamentar que, após ter produzido cerca de 300 bicicletas, desistiu do empreendimento.
Em que pese o viés direitista do canal My News e o caráter de classe de di Grassi, certamente não um operário, contra fatos não há argumentos. O empresário, mais para frente na entrevista, elogia indiretamente a política econômica liberal (em oposição à protecionista) de Javier Milei na argentina, onde a maioria do povo passa fome em consequência do “equilíbrio fiscal” do presidente. A saída para o Brasil obviamente não é essa.
Mas também não é a política do atual governo, principalmente de seu ministro da Economia, Fernando Haddad. Contemporizar com os bancos só leva a indústria nacional à ruína, joga os trabalhadores em empregos cada vez menos qualificados. André Roncaglia, ideólogo ligado ao governo petista, diz que a burguesia brasileira “só quer oferecer empregos de baixa qualidade”, mas isso também é uma falácia. Se ainda existir uma burguesia nacional que pretende produzir alguma coisa, como parecia ser o caso de di Grassi, essa burguesia é esmagada pelo imperialismo e por seus representantes nacionais, os banqueiros, tanto quanto o restante da população. Talvez não tanto quanto porque não chegam a passar fome, mas, ao mesmo tempo, não conseguem avançar em nenhum setor de maior complexidade tecnológica.
O que temos no Brasil é, por exemplo, a exploração da matéria-prima bruta, como o nióbio. Ou produtos de baixo valor agregado como os oferecidos pelo agronegócio, que cobra da população brasileira o custo da oportunidade de exportar seus produtos, praticamente dolarizando o preço dos alimentos que produzimos em território nacional.
Qual é a saída para esse atraso que nos é imposto? Primeiramente, a culpa não é da Zona Franca de Manaus. A ideia de povoar o País é de extrema importância, dada a cobiça internacional sobre o território amazônico. O problema é que se começou pelo fim. O incentivo fiscal para se produzir lá deveria vir depois da infraestrutura estar estabelecida, com rodovias, ferrovias e quiçá hidrovias prontas para escoar a produção a baixo custo para os produtores. Ademais, a região precisaria de mais desenvolvimento para que a população local e a de estados vizinhos pudesse consumir os produtos de alta tecnologia manufaturados lá. O propósito da Zona Franca não deveria nunca ser substituir o parque industrial paulista, mas complementá-lo. A especulação imobiliária (fruto da ação parasitária dos bancos), porém, expulsou as indústrias da grande São Paulo, transformando algumas cidades industriais, como Guarulhos, numa sombra daquilo que já foram. Uma Detroit brasileira.
A saída é essa. Grandes investimentos para recuperar e construir nova infraestrutura no Brasil. Mais investimentos em serviços públicos como saúde e educação. É assim que a China segue sendo essa potencial industrial em que se transformou ao longo das últimas décadas, apesar do grande aumento dos salários dos operários chineses – até hoje nominalmente mais baixo que o dos brasileiros. Acontece que o poder de compra do trabalhador chinês, que não precisa de convênio médico ou pagar escola particular, é muito maior do que o do trabalhador brasileiro, normalmente endividado com seus próprios problemas e os de seus familiares. Isso para não falarmos do custo da moradia, seja aluguel ou compra. Soma-se a isso o preço da logística e da energia, que na China é infinitamente menor que no Brasil, graças às ferrovias de alta velocidade, às inúmeras usinas de geração de energia elétrica e às baterias produzidas nacionalmente para armazenar energia gerada por meios não convencionais. Para terminar, o país já produz chips de alto grau de complexidade nacionalmente, e diversos outros componentes fundamentais para apoiarem uma indústria moderna.
O Brasil era assim, em 1950. Éramos, como a China é hoje, o país mais desenvolvido entre os países de capitalismo atrasado. Demos inúmeros passos para trás e continuamos a dar. A solução liberal de corte de impostos só vai piorar este quadro. Para pensarmos num futuro da indústria nacional, precisamos, acima de tudo, enfrentar o sistema financeiro que suga de forma grotesca o orçamento nacional através de juros – cada vez mais altos! – da dívida pública. Além com mal que causam em outros setores como na especulação imobiliária e no setor dos seguros (ambas atividades improdutivas, que não apenas não acrescentam nada à economia, como parasitam o pouco que é produzido).
Ah, sim, esquecemos de mencionar que o sistema financeiro chinês é controlado pelo Estado. Esse talvez seja o elemento fundamental. Mas quem vai comprar essa briga no Brasil? Como já disse Trótski, cabe à classe operária do país atrasado completar a revolução burguesa, estabelecer um regime verdadeiramente democrático-burguês e desenvolver a economia nacional rumo a uma economia socialista. Ainda que as críticas de di Grassi tenham alguma validade, como pudemos ver pelo próprio espírito do piloto-empresário, ele não tem o que é necessário para promover essa transformação revolucionária. Só a classe revolucionária tem.