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Coluna

Sobre o Caso Kogos vs. PCO

"Os ataques às liberdades públicas são um convite ao fascismo e a bomba só estoura do lado mais fraco"

O Direito brasileiro deita suas raízes na tradição romano-germânica, ou seja, nosso Direito é escrito, guarda limites na lei e deve ser aplicado segundo a hermenêutica, a qual constitui uma técnica de interpretação e aplicação das leis aos casos concretos. O juiz não está, portanto, autorizado a criar nada nem muito menos adotar esta ou aquela orientação política e, ainda, a legitimidade de sua decisão depende da coerência e reconhecimento do método empregado. Essa é a nossa tradição, baseada em dogmática jurídica.  

Os institutos oriundos da common law foram recentemente incorporados ao nosso Direito, mas muito mais por um movimento de ativismo judicial do que pelo próprio legislador. E é aí, neste ponto exato, que nossa Constituição é frontalmente atacada: uma certa elite, que idolatra o Direito estadunidense e estudou em escolas norte-americanas, já chegou ao Supremo Tribunal Federal. Investidos em um poder cujos limites constitucionais não são reconhecidos por eles, adotam os magistrados brasileiros uma baderna metodológica para solucionar os casos, utilizando-se desde sua opinião particular, dogmas religiosos até as preferências políticas. O solipsismo judicial já é uma prática recorrente na nossa já fragilizada democracia.

A dogmática jurídica

A principal fonte do Direito é a lei, e a lei abrange princípios e regras constitucionais, que são o fundamento de validade de toda a Ordem Jurídica vigente no país. A doutrina, ou seja, os juristas (pesquisadores do Direito), discute criticamente (ou pelo menos deveria) e constrói a dogmática jurídica. A jurisprudência também é considerada fonte de Direito. E, no caso brasileiro, os magistrados subservientes ao imperialismo trataram de inovar a lei, muitas vezes subvertendo o sentido e alcance do Direito, ignorando sua própria tradição e identidade nacional, e, por consequência, sua dogmática. O problema é que a dogmática jurídica não decorre da imaginação inventiva de seus pesquisadores, mas sim da história e da experiência social. Esta racionalidade é que confere legitimidade ao Direito. Se for ignorada, caímos no solipsismo, ou seja, não é possível controlar a sanha arbitrária dos juízes, que acabam agindo contra o Direito, contra a lei. 

O regime constitucional da liberdade de expressão

As liberdades civis, ou os direitos fundamentais de primeira dimensão, impõem ao Estado uma conduta negativa, de não interferência. Diz-se, assim, da eficácia vertical dos direitos fundamentais. Ora, isto não decorre de devaneios de juristas comunistas nem liberais, mas se consolida na história e na experiência humana a vida em sociedade, segundo a qual o Estado é uma entidade jurídica que deve limitar-se aos direitos inerentes a uma condição humana digna. Já falei um pouco sobre isso aqui nesta coluna. A experiência nos mostra que o Estado deve ser limitado o quanto mais se referir aos direitos da personalidade – as liberdades civis – ao invés de ser um agente repressor e limitador da dignidade humana. “Ah, mas isso é coisa de burguês!” – o esquerdista disse. Respondo: não é a liberdade em si algo que pertença à burguesia, mas a todos os seres humanos. Sem ela, seremos reféns do poder estatal. Não interessa a ninguém ter sua liberdade restringida, mas somente àquele que já está no poder e não deseja ser questionado nem confrontado. Se o esquerdista não estiver ainda satisfeito, relembre as lições que Lênin nos legou.

Então, a priori, nenhum direito da personalidade – liberdade civil – pode ser restringida, exceto se seu exercício implicar direta e necessariamente na ofensa de um bem jurídico de maior valor. Neste caso, a Constituição autoriza o legislador penal tipificar a conduta lesiva. Dentro dos limites do garantismo (já falei também sobre isso aqui nesta coluna).

O caso Kogos vs DCO trata do que se chama eficácia horizontal dos direitos fundamentais. É que na vida de relação, essas liberdades civis estão o tempo todo contrapostas (veja mais aqui). Quando alguém expressa sua opinião sobre um fato, pessoa ou coisa, provavelmente alguém se sentirá ofendido. Há diversas razões para que uma pessoa chateie com algo que alguém falou, escreveu ou postou nas redes sociais. Isto é absolutamente normal, humano, decorre do nosso modo de vida e da forma como exercemos nossas capacidades humanas. A tensão é uma decorrência disto. Neste sentido, o Direito visa preservar o espaço de liberdade de todos e por isso mesmo não autoriza o Estado a intervir, sobretudo, previamente, enumerando as condutas que podem ser tomadas pelas pessoas. 

No entanto, pode alguém extrapolar e causar um sofrimento considerável a outra pessoa. Na dogmática alemã, isso constitui uma exceção. Na práxis estadunidense é quase uma regra: na prática, se quiser ofender alguém, é só pagar depois pelos danos. Mas em nenhum dos dois sistemas a restrição prévia as liberdades por parte do Estado é legítima, frise-se.

O sistema é o seguinte: fora da esfera penal, tudo é permitido. E quando alguém, no exercício de sua liberdade, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Este é o regime da responsabilidade civil por danos à pessoa humana.

Lembre-se de não tomar a lei em abstrato, mas de aferir seu sentido e alcance conforme a dogmática jurídica.

Kogos contra o DCO

Foi neste Diário que teria se originado a alegada ofensa à honra e imagem de Kogos. Em uma matéria que já não está mais disponível, o autor do artigo, cujo título era: “Queridinho de todos – Por que Boulos é uma unanimidade nacional – Esquerda e direita, todos querem elogiar Guilherme Boulos”, afirmava em uma única frase no meio do texto que “Até mesmo o grotesco personagem fascista, Paulo Kogos, declarou voto em Boulos contra Covas”. Kogos é figura que apareceu nas ruas em atos bolsonaristas e se autodenomina “liberal conservador”.  E foi somente esta a única menção na matéria que teria ensejado um grave sofrimento passível de indenização, direito de resposta e retratação. Isso foi o que ele não demonstrou nem provou nas suas alegações.

Por se tratar de uma liberdade civil, impõe-se a técnica da ponderação de interesses para resolução de conflitos. No caso, as liberdades de expressão e manifestação do pensamento, de um lado, e de outro lado, a imagem e honra. Primeiro e antes de tudo, para que seja imputada a responsabilidade civil, o ofendido tem que provar o dano, demonstrar sua extensão e o nexo de causalidade. Era preciso que o Kogos demonstrasse o dano decorrente da frase que lhe foi atribuída pelo autor da matéria. Como ele se apresenta como um comunicador “influencer” conservador, reconhecido nas redes sociais, o dano à sua imagem poderia ser demonstrado com uma queda na sua audiência, em decorrência da matéria publicada pelo DCO, por exemplo. Entretanto, o vídeo em que ele menciona o caso em resposta ao DCO teve apenas 14 visualizações, muito menos do que as milhares de visualizações de seus vídeos e entrevistas. Sem provar o dano e sem provar que o dano ocorreu em decorrência da matéria do DCO não há como imputar responsabilidade civil. 

Para liberdades contrapostas, a ponderação de interesses

O caso versa sobre o exercício da liberdade de expressão – Arts. 5°, IV e XIV, e 220, e da liberdade de imprensa – artigo 220, §1º de todos da CRFB/88. Da eficácia horizontal dos direitos fundamentais extrai-se, a técnica da ponderação de interesses, conforme determina o parágrafo 2º do artigo 489 do Código de Processo Civil. Disso decorre que o magistrado está obrigado a adotar a metódica para solucionar o conflito. 

Assim, para solucionar o caso, o magistrado deve, necessariamente, por imposição da lei processual civil, ponderar entre estes dois direitos assegurados, demonstrando fundamentadamente, ponto por ponto (são os chamados topos da técnica Tópica, também decorrente da nossa tradição jurídica), porque assim exige a nossa Constituição no art. 93, IX. 

Mas o magistrado disse apenas que:  “A matéria em discussão é somente de direito e de fato que dispensa outras provas além das que estão acostadas aos autos”. O problema é que a prova dos autos era somente a matéria do DCO, além de uma longa exposição sobre o posicionamento ideológico dele mesmo e sua “fama” nas redes sociais. Não da nem para falar em responsabilidade civil… e sem a prova do dano e de sua extensão, não há como fixar um valor para indenização. Mas o juiz fixou lá uns tantos mil reais, ideia que ele tirou sabe-se lá de onde. A regra da proporcionalidade entre o dano e a reparação foi às favas.

Curioso é que nem o próprio Boulos, a quem se dirigia o artigo publicado pelo DCO, se sentiu ofendido a ponto de ingressar com uma ação de responsabilidade civil. Ora, a mera comprovação da publicação de uma matéria jornalística não é suficiente para imputação da responsabilidade simplesmente porque não se pode presumir que o exercício de uma liberdade cause um dano a outra liberdade que mereça reparação civil. Se assim fosse, viveríamos pagando para falar e , neste caso, só falaria quem tivesse dinheiro para pagar. Então, esse seria o reino das liberdades da burguesia. 

Em português: isso é o que temos hoje, mas não queremos! Queremos a liberdade para todas as pessoas, e suportamos os aborrecimentos decorrentes da convivência com outras pessoas. Combatemos a mentira com a verdade e não com sanções judiciais.  

Em juridiquês: a ideia é conferir maior concretude a liberdades públicas, de modo a satisfazer o sistema constitucional vigente. Portanto, a lei se impõe ao magistrado que deve utilizar a técnica prevista quando o conflito versar sobre garantias constitucionais, sob pena de nulidade da decisão proferida. A construção deste paradigma visa assegurar uma prevalência relativa daqueles direitos ou de interesses marcados pelas respectivas condições de precedência, o que deve ser demonstrado pelo magistrado no caso concreto. É que entre o exercício de uma liberdade civil em contraposição a outra não há uma solução adequada preestabelecida na Ordem Jurídica para cada caso concreto, o que configuraria evidente usurpação jurisdicional da competência legislativa.

Esta justificação racional não é o melhor sistema, nem é o que desejamos de fato, mas é o que temos e é o que nos permite ter o mínimo critério para aferir a validade de uma decisão judicial. O maior deficit de racionalidade do discurso jurídico afronta as exigências constitucionais relativas a menor intervenção do Estado no exercício das liberdades civis.

Intervenção odiosa

Não bastassem os impropérios da decisão, o magistrado ainda ordenou o conteúdo de uma retratação, determinando que o PCO (como o DCO não foi citado validamente, o magistrado aceitou o PCO mesmo, outra nulidade…) se retrate e impondo que escreva exatamente o que ele determinou na sentença. Além do solipsismo, a intervenção na liberdade de expressão e manifestação de pensamento é tão monstruosa, que nem sei por onde começo. Para começar, os direitos fundamentais tem eficácia vertical, quer dizer, impõem ao Estado os limites segundo os quais ele está autorizado a intervir. E neste sentido, a intervenção está adstrita aos limites da proporcionalidade. Sobre este princípio, que, na verdade, é um postulado do Estado de Direito, eu trarei mais detalhes na próxima coluna.

O fim disso tudo, já é previsto: os ataques às liberdades públicas são um convite ao fascismo e a bomba só estoura do lado mais fraco. O lado mais fraco, sabemos qual é. Mas o pior é ter as bençãos da esquerda para tamanho retrocesso.

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