Em uma comparação esdrúxula, a jornalista norte-americana Michelle Goldberg afirma que negar aos judeus o direito a um Estado judeu na Palestina seria o mesmo que negar aos muçulmanos o direito de se organizarem em torno da Xaria, o sistema jurídico do Islã. A ideia está presente no artigo Quando antissemitismo e antissionismo colidem, publicado pelo jornal The New York Times.
Durante o texto, Goldberg se apresenta como uma liberal – uma pessoa pretensamente “democrática”, que teria uma posição equilibrada sobre a situação no Oriente Médio. Neste sentido, ela se diz defensora da tese de que antissionismo não seria necessariamente a mesma coisa que antissemitismo e da “solução de dois Estados” – um, judeu, e outro, palestino. Vejamos ponto a ponto.
Sobre o antissemitismo, ela diz que “oponentes bem-intencionados do nacionalismo judaico, alguns deles próprios judeus, estão sendo falsamente difamados como antissemitas”. Correto: pessoas como Breno Altman, Lula e Recep Erdogan, bem como organizações como o Partido da Causa Operária (PCO), já foram chamados de “antissemita” por se opor ao genocídio na Faixa de Gaza.
O problema, contudo, está quando a autora afirma que “o antissemitismo também aparece camuflado no antissionismo, quando as pessoas cospem a palavra ‘sionista’ quando, na verdade, parecem querer dizer ‘judeu’”.
Acontece que esse é justamente o argumento dos defensores do genocídio que tentam equiparar o antissionismo ao antissemitismo. Há antissionistas antissemitas? É lógico que há. Assim como há nazistas antissemitas e nazistas que não são antissemitas, assim como há fascistas que são racistas e fascistas que não são racistas. A questão não é essa.
A única discussão que importa é: o antissionismo é intrinsecamente antissemita? Não, como a própria autora colocou. Sendo assim, a discussão já seria totalmente fora de propósito.
Mas não é só isso. Haveria de fato uma onda “antissemita”? O antissemitismo é de fato um problema político importante hoje? Pois, se não tiver relevância, qual a importância de discutir se há antissemitas camuflados de antissionistas ou não?
Vejamos os fatos: não há nem o mais remoto indício de que haja tal onda. Pelo contrário: são os sionistas, supostamente em nome dos judeus, que estão assassinando crianças palestinas. Desde a operação Dilúvio de al-Aqsa, não se tem notícia de um único judeu que sequer tenha sido agredido. Enquanto isso, mais de duas milhões de pessoas passam fome na Palestina e os muçulmanos são discriminados em praticamente todo o mundo.
Quanto à solução de dois Estados, o que diz a autora?
“Penso que a ideia de Israel como uma entidade colonial que acabará por ser desmantelada é uma fantasia maligna – a maioria dos judeus israelenses não tem outro lugar para ir – mas também reconheço que a criação do país não pode ser dissociada da desapropriação dos palestinos.”
Aqui, o cinismo é impressionante. Mesmo reconhecendo que “Israel” é produto de uma limpeza étnica, Goldberg considera que seria maligno querer o fim de “Israel”. Por quê? Porque os judeus não teriam para onde ir…
Será mesmo? Em algum lugar do mundo, é proibido o ingresso de judeus? Ainda que fosse, estaria justificado, então, invadir o território de um outro povo e submeter esse povo a um regime de apartheid?
Além de tudo, a ideia em si é absurda, pois o fim de “Israel” em nada afetaria os direitos dos judeus. O fim de “Israel”, segundo os que o defendem, significaria apenas o fim de um Estado supremacista, e não a expulsão da população que nela vive. Quem defende o fim de “Israel” defende o estabelecimento de um Estado democrático, com a convivência e igualdade entre os diversos povos.
A autora, então, argumenta que “os palestinos estavam longe de serem os únicos refugiados à medida que os mapas eram redesenhados na sequência da Segunda Guerra Mundial […] Não é culpa de Israel que alguns dos seus vizinhos tenham mantido os palestinos deslocados como refugiados apátridas, em vez de os integrarem como cidadãos plenos”.
É realmente um grande argumento. Já que já há tantos refugiados no mundo, por que então não aumentar ainda mais o número de refugiados? Agora, os crimes de “Israel” estão plenamente justificados!
O argumento dos “países vizinhos” também chama muito a atenção. A autora dá a entender que, como o mundo inteiro é “mau”, então “Israel” teria o direito a ser “mau” também. Mas não é essa a questão. As inúmeras traições dos países árabes ao povo palestino ocorreram por causa da pressão do imperialismo sobre eles. Isso, por sua vez, só torna ainda mais criminoso o Estado de “Israel”: ele é produto de uma conspiração dos países poderosos contra os povos do Oriente Médio.
Depois de toda a defesa de que “Israel” tenha o direito de barbarizar com a população palestina, ela chega, então, à comparação citada no início da matéria:
“O desejo de um regresso a Israel está profundamente ligado à prática religiosa judaica; os rituais dos dois feriados judaicos mais importantes, Páscoa e Yom Kippur, culminam com as palavras ‘próximo ano em Jerusalém’. Há uma longa história de judeus sendo solicitados a extirpar o que consideram partes cruciais de sua identidade como uma condição de aceitação […] A analogia é imperfeita, mas eu compararia as exigências da esquerda para que os judeus repudiem o sionismo com as exigências da direita para que os muçulmanos renunciem à Xaria. Não há nada de errado em opor-se à autoridade da lei religiosa ou criticar a forma como a Xaria é aplicada em partes do mundo muçulmano. Mas tratar os muçulmanos como suspeitos se eles não romperem com as suas próprias tradições é obviamente islamofóbico.”
No final das contas, ainda que todo o processo do estabelecimento de “Israel” seja sanguinário, criminoso e produto dos interesses do imperialismo, o grande argumento da autora é o de que a entidade sionista seria parte da “tradição” dos judeus. Ainda que fosse, o fim de “Israel” impediria o “fim do ano em Jerusalém”? É óbvio que não, como já foi dito.
Quanto à bizarra comparação com a Xaria, diremos o óbvio. A Xaria é um sistema jurídico dos muçulmanos para regulamentar a sua própria sociedade. Por isso, ninguém tem o direito de impor um sistema diferente. O sionismo, por sua vez, é um movimento para impor pela força um Estado no território de outro povo. Não há porque ser tolerado.