Rezsö Kasztner, mais conhecido por seu nome hebreu, Rudolf Israel Kastner, foi um sionista de origem húngara conhecido por sua “ajuda” na evacuação de judeus húngaros para o Mandato Britânico da Palestina durante a Segunda Guerra Mundial. Kastner era ligado ao Mapai, partido sionista supostamente de esquerda, e após o final da guerra, mudou-se para a Palestina, onde chegou a integrar o gabinete de Davi Ben-Gurion, líder de seu partido e primeiro primeiro-ministro israelense.
Kastner era uma das lideranças do Comitê de Auxílio e Resgate de Budapeste e o “grande feito” que realizou na posição foi a evacuação de pouco mais de 1.600 judeus que, não fosse sua intervenção, teriam um fim trágico nas câmaras de gás de Auschwitz, campo de concentração nazista na Polônia. O trem que evacuou esses refugiados ficou conhecido como o “trem Kastner”, em referência ao suposto herói.
Essa, porém, é apenas parte da história. As negociações que levaram a esse resgate, por outro lado, são tema muito polêmico, até mesmo entre historiadores sionistas. Para evacuar essas pessoas, Kastner negociou diretamente com Adolf Eichmann, oficial sênior da Schutzstaffel (SS, organização paramilitar nazista) e um dos principais organizadores do Holocausto; e Kurt Becher, que à época das negociações atuava como chefe do departamento econômico do comando da SS na Hungria.
A “operação de resgate” de Kastner envolvia a cobrança de uma compensação dos judeus que quisessem ser salvos, recursos esses que seriam transferidos para Becher, ou seja, para a SS. Dentre os 1.600 salvos estavam diversos membros afluentes da comunidade judaica húngara, dezenas de membros da família expandida de Kastner e pessoas ligadas ao Maipai.
O lado negro do resgate dessas centenas de pessoas foi exposto somente em 1952, por Malchiel Gruenwald, sionista húngaro que havia imigrado para a Palestina ainda antes da invasão alemã, em 1938. Gruenwald era ligado ao revisionismo sionista – seu filho fora até membro do Irgun, esquadrão da morte sionista – e sua denúncia contra Kastner foi diminuída como uma disputa entre lados opostos do sionismo. No momento da denúncia, Kastner já era ministro do Comércio e da Indústria do gabinete de Ben-Gurion.
Gruenwald, em seu panfleto, acusava Kastner de ser um carreirista e colaboracionista do anzismo que havia “indiretamente assassinado seu povo querido [judeus húngaros]”. Apesar do trem de Kastner ter salvo 1.600 pessoas, estima-se que mais de 800 mil judeus húngaros tenham sido enviados para Auschwitz, pessoas às quais os soldados nazistas referiam-se como o “salame húngaro”. O genocídio a ser cometido em Auschwitz havia sido denunciado por fugitivos do campo de concentração em panfleto conhecido como “O protocolo de Auschwitz”, que fora enviado inclusive à Agência Judaica, que não divulgou o documento. Um dos autores do documento alega que Kastner estava ciente do destino da maioria de judeus que não fazia parte de sua barganha, mas mesmo assim não fez nada para alertá-los sobre seu destino. Muitos, iludidos pelos ocupantes nazistas, achavam que estavam sendo transferidos para meros campos de trabalho.
A denúncia de Gruenwald
Reproduzimos abaixo parte do panfleto de Gruenwald, como publicado em artigo sobre o sionista na Wikipedia.
Esperei muito tempo para expor esse carreirista que considero, devido a sua colaboração com os nazistas, um assassino indireto de meu querido povo.
Quem é esse porta-voz do Ministério do Comércio e da Indústria; quem é esse líder de peso dos judeus húngaros; quem é esse sujeito que foi colocado no topo da lista de candidatos ao parlamento de Israel pelo partido do governo Mapai?
Esse personagem é o Dr. Rudolf Kastner, aventureiro político, movido por uma megalomania doentia.
Para quem, por conta de quem, Dr. Kastner, o senhor foi como um ladrão na noite a Nuremberg para se tornar testemunha de defesa do coronel da S.S. Kurt Becher, o assassino de judeus, o homem que chafurdou no sangue de nossos irmãos na Hungria? Kurt Becher – Administrador Econômico da Gestapo!
Por que o senhor o salvou da pena de morte que ele tão bem merecia?
O senhor viajou para Nuremberg para salvar um assassino em massa de judeus. O que o levou a fazer isso?
Que tipo de acordo de cavalheiros havia entre esse assassino Becher e esse homem que eu acuso de colaborador dos nazistas?
E é esse mesmo Kastner que o Mapai acolheu em seu seio e colocou no topo de sua lista de autoridades.
Meu Deus! Os atos de Kastner em Budapeste nos custaram a vida de centenas de milhares de judeus!
Exigimos um comitê público imparcial de investigação.
Kastner deve ser removido da política e da sociedade deste país.
Manteremos isso em nossa agenda até que o mal acabe.
[…]
Ele queria se salvar, para que Becher não revelasse à corte internacional seus acordos e seus atos conjuntos de roubo…
Onde está agora o dinheiro dos judeus da Hungria, milhões para os quais não há prestação de contas…
Ele salvou nada menos que cinquenta e dois de seus parentes, e centenas de outros judeus – a maioria dos quais havia se convertido ao cristianismo – compraram seu resgate de Kastner pagando milhões! Foi assim que Kastner salvou os membros do Mapai…
Ele salvou pessoas com contatos e fez uma fortuna no processo. Mas milhares de sionistas seniores, membros do Mizrahi e de partidos ultra-religiosos – esses, Kastner deixou no vale da sombra da morte.
Mais do que denunciar as condições dos acordos, Gruenwald ainda destacou como Kastner se desdobrou para defender o nazista Becher nos julgamentos de Nuremberg.
Gruenwald sofreu processo por difamação de Kastner, mas após dois anos de julgamento saiu vitorioso. Kastner mentiu durante o julgamento, alegando que nunca tinha deposto em favor de Becher, algo que foi desmentido e agravou sua situação. O ministro do Comércio e da Indústria acabou por renunciar ao cargo e o gabinete de Ben-Gurion foi dissolvido e teve que ser reconstruído.
Kastner viveu seus últimos anos no isolamento. Morreu em 1957, assassinado por integrantes do grupo Malkhut Yisrael (“Majestade de Israel”), formado por ex-integrantes do grupo de extrema-direita sionista, o Lehi. O julgamento do assassinato ocorreu em condições muito misteriosas nas quais os assassinos foram punidos, mas o mandante do crime Yaakov Heruti, líder do Malkhut Yisrael, sequer foi investigado e viveu até os 95 anos em liberdade.
Ben-Gurion e Shin Bet sabiam de tudo
O caso de Kastner permanece como alvo de inúmeras teorias em Israel. Vilão ou herói? Quem o queria morto?
O caso voltou à tona este ano com o resultado das investigações do historiador Nadav Kaplan, que teve a oportunidade de entrevistar diversas figuras envolvidas no assassinato e no julgamento de Kastner, incluindo o próprio Yaakov Heruti.
Em entrevista realizada pelo jornal Haaretz com o historiador, o assassinato foi organizado e encoberto pelo Shin Bet, uma das agências de inteligência israelenses, que atua dentro do país, em oposição ao Mossad que atua em questões internacionais. Segundo os documentos aos quais Kaplan teve acesso nos arquivos da agência israelense, o Shin Bet monitorava há anos Heruti e sua organização. Era impossível que não estivessem cientes do plano do assassinato de Kastner.
Kaplan pediu acesso a documentos de 1957 relacionados a seu assassinato, mas não obteve autorização para consultá-los por se tratar de um risco “à segurança nacional”.
“Os materiais que foram localizados em um exame inicial indicam que eles contêm informações cuja revelação poderia prejudicar a segurança nacional e os métodos de operação do Shin Bet”, disseram as autoridades.
Kaplan alega não ter encontrado provas de que Ben-Gurion soubesse dos acordos que Kastner realizou com os nazistas, mas há muitos israelenses e judeus sobreviventes do Holocausto que defendem essa tese. Por outro lado, o historiador israelense diz ter chegado à conclusão de que o assassinato de Kastner foi de fato planejado pelo alto escalão do governo israelense, implicando naturalmente o primeiro-ministro, Ben-Gurion.
Numa tentativa de eliminar dois coelhos com uma cajadada, o Shin Bet, sob ordens do governo do Mapai, fez um acordo com Heruti para que o assassinato de Kastner fosse a última ação do Malkhut Yisrael, o que de fato aconteceu. Dessa forma, eliminaram Kastner, que havia se transformado num problema tanto para o Mapai como para o próprio governo israelenses; e colocaram o movimento de extrema-direita sob controle.
Kaplan naturalmente não quer se envolver com o que muitos em “Israel” alegam ser uma teoria da conspiração: que a Agência Judaica comandada por Ben-Gurion estava ciente dos planos do Holocausto e resolveram salvar, através de pessoas como Kastner, apenas os judeus que os interessavam. Ainda assim, sua denúncia expõe o caráter mafioso do governo israelense desde a fundação do país. Mesmo o Mapai, que seria um partido sionista “de esquerda”, estava envolvido em operações criminosas. Vindo dos organizadores da Nakba, não poderíamos esperar nada diferente.
O atual governo de Benjamin Netanyahu é apontado como único responsável pelo genocídio em Gaza e por ter um comportamento antidemocrático, mafioso. A história de “Israel”, porém, esclarece que esse sempre foi o modus operandi do sionismo.