Antes de começar, uma ressalva: esta coluna tratará apenas de jogos para um jogador. Jogos competitivos atravessam sua própria crise, de características um pouco diferentes, mas ainda assim agrupam um número cada vez maior de espectadores, jogadores e entusiastas. A crise que nos leva à pergunta que é título da coluna de hoje refere-se a jogos como Assassin’s Creed, Grand Theft Auto, Elden Ring e The Legend of Zelda.
Destaco o último exemplo por preferência pessoal e por falta de tempo para jogar todos esses jogos que tomam dezenas (senão centenas) de horas de seus jogadores e que são, em grande medida, o mesmo jogo. Acompanho a série The Legend of Zelda – ou franquia, como preferem os capitalistas da indústria de videogames – há praticamente três décadas e, ainda assim, não consigo compartilhar do entusiasmo dos demais jogadores em relação ao último lançamento, The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom.
Deveria ser o público alvo perfeito. Poderíamos dizer que sou um “fã” da série, mas confesso que meu ânimo para jogar a próxima edição foi severamente impactado por Tears of the Kingdom. O jogo repete o estilo de design da edição anterior, Breath of the Wild, de mundo aberto, estrutura seguida pela maioria dos jogos de grande orçamento lançados nos últimos dez anos. Nesse tipo de jogo, o jogador dita o ritmo do desenvolvimento da narrativa, podendo explorar o mundo digital no seu ritmo, da forma como achar mais interessante.
Considero isso uma armadilha. Há apenas uma ilusão de variedade, mas, na realidade, os jogos são menos livres que os bons e velhos jogos lineares. Esses mundos digitais são gigantescos e leva-se horas – no mundo real – para percorrer distâncias sem que nada de interessante cruze o caminho do jogador. Os designers tentam nos manter entretidos com desafios que mais considero armadilhas psicológicas. São eventos repetitivos com recompensas aleatórias (uma espécie de caça-níquel cobrada em tempo de jogo), que sempre dão uma esperança de que se vai conseguir algo bom, o que raramente ocorre. Logo percebe-se que nada de interessante virá desses eventos, nem na forma de conteúdo narrativo, nem na forma de recursos que se possa usar para progredir no jogo, e disso fica evidente o grande tédio que é percorrer esses mundos enormes e vazios.
Mesmo do ponto de vista narrativo faz muito pouco sentido esses mundos serem tão vazios. Que tipo de sociedade é essa que vive em pequenos vilarejos esparsos com dezenas de pessoas? Quando tentam criar a ilusão de que o mundo é habitado, como em Grand Theft Auto e Cyberpunk 2077, os personagens que navegam o mundo, quando interagem com o jogador, falam apenas frases prontas. Tem o papel prático de placas, não de personagens que enriquecem a narrativa.
Voltando a Tears of the Kingdom, o jogo recebeu grande atenção por sua mecânica central, que resumo aqui como uma mecânica de “construção de geringonças”. Como programador não tenho como negar: é um feito técnico impressionante. Acontece que o jogo praticamente não exige que o jogador domine essa mecânica de forma alguma. Nunca é exigido que se construa uma geringonça mais complexa para superar um desafio, ou uma geringonça específica. Todos os desafios no jogo podem ser superados na “força bruta”, isto é, sem usar de forma engenhosa a mecânica central do jogo. Isso para não dizer que narrativamente ela não faz sentido algum. Controlamos uma personagem superpoderosa que pode construir incríveis “meios de produção” que operam com energia semi-infinita e em momento algum o universo do jogo coloca a pergunta sobre porque as pessoas ainda cultivam a terra artesanalmente e vivem naquela sociedade medieval atrasada.
Muitos se refugiarão no argumento de que é a “lógica do jogo”, ou seja, o jogo não precisa construir um universo coeso e coerente. Como alguém que aprecia esse meio e gostaria de vê-lo atingir um novo patamar, rejeito essa argumentação como uma das principais ferramentas que mantém os jogos nesse atraso cultural.
Tears of the Kingdom é um jogo feito para tirar “10” nas resenhas da imprensa especializada. Seu visual é incrível, a trilha sonora funciona muito bem com o jogo e suas mecânicas complexas são muito interessantes. Do ponto de vista de game design, porém, um critério ironicamente pouco considerado nas resenhas, o jogo é uma bagunça completa e acredito que finalmente descobri o porquê.
Eu não sou o público alvo desse jogo, apesar de acompanhar a série a tantos anos. O público são pessoas que profissionalmente jogam videogame no Twitch e em outras plataformas e que, como trabalham jogando videogames, têm centenas de horas para dedicar à construção da geringonça digital perfeita. Quando conseguirem, colocarão o clip no Twitter e demais redes sociais (os jogos modernos têm a funcionalidade de compartilhamento de clips embutida neles) para o delírio de milhões de seguidores. E é por isso também que o apelo narrativo desses jogos decaiu significativamente. Finalmente, como alguém pode acompanhar uma narrativa com milhares de pessoas lhe assistindo ao vivo e comentando, normalmente esculachando o que se passa na transmissão. Fica impossível de se levar qualquer coisa a sério.
O custo de produção desses jogos é cada vez mais vultuoso e cada vez mais sistemas complexos são necessários para engajar os streamers do Twitch e seus espectadores. É claramente insustentável dado que, mesmo jogando profissionalmente, esses jogadores não têm tempo infinito, nem sua audiência e, portanto, o mercado tende a se concentrar em torno de certos jogos. Apenas algumas das empresas desenvolvedoras verão retorno sobre seus investimentos milionários e mesmo as que encontrarem lucro devem encontrar um lucro cada vez menor.
A indústria de jogos (é estranho pensar numa indústria cultural, mas esse é o mundo em que vivemos) caminha para um abismo, assim como o sistema em que ela está inserida. A disputa pela atenção de seu público, parte do qual teve que se profissionalizar para tornar o esquema rentável, tende a ser cada vez mais acirrada e já estamos vendo uma crescente concentração de estúdios em monopólios cada vez maiores. Essa situação não é nova, mas é especialmente triste ver essa crise afetando uma série e uma produtora – a japonesa Nintendo – que acompanho há tanto tempo.
Mas há males que vêm para o bem. Em sua breve história, os videogames já atravessaram um crash no final dos anos 1980 que resultou no cômico enterro de milhares cartuchos do jogo E.T. para possibilitar a manutenção de seus preços elevados. O período que seguiu esse crash foi repleto de criatividade e é provavelmente responsável pelo nosso apreço à indústria.