No dia 15 de outubro, na semana seguinte à deflagração da Operação Dilúvio al-Aqsa, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) publicou, em seu sítio oficial, o artigo Algumas polêmicas necessárias ao redor da guerra na Palestina. O texto é assinado por Eduardo Almeida, dirigente histórico da legenda, cujos escritos costumam apresentar, de maneira sistemática, a política do PSTU para uma determinada situação. É de Eduardo Almeida, por exemplo, o texto Sobre o processo de Lula, de 2016, em que o dirigente apresenta de maneira clara a orientação que os militantes do partido deveriam seguir diante da perseguição ao então ex-presidente Lula: “Nós defendemos a prisão e expropriação dos bens de todos os corruptos. E isso significa exigir a prisão de Lula e também de Aécio e Renan pelo envolvimento na Lava Jato, de Alckmin pelo roubo da merenda escolar, e assim por diante”.
No mesmo sentido, Almeida procura aqui estabelecer as diretrizes para seu partido diante do acirramento do conflito entre israelenses e palestinos. Como o próprio título sugere, o objetivo de Almeida é situar o PSTU em meio às “polêmicas” em torno de algo que deveria ser muito simples: o apoio incondicional a um processo de libertação nacional. A necessidade, no entanto, não vem por acaso: a política de zigue-zague adotada pelo partido no último período causou uma confusão tamanha que obrigou o dirigente a vir a público para explicar qual seria a sua “interpretação” dos acontecimentos.
O texto começa com obviedades: “a ação dos palestinos, no sábado, 7 de outubro, invadindo as áreas ocupadas por Israel, precipitou uma crise política que se tornou o centro da luta de classes mundial”. O primeiro trecho que chama a atenção, contudo, é a parte final de sua introdução:
“No mundo, agregou um forte elemento de crise na ordem mundial, já abalada pela onda descendente da economia internacional desde a recessão de 2008, pelo conflito interimperialista entre EUA e China, pela guerra na Ucrânia”.
De fato, o ataque coordenado pelo Hamas é mais um elemento na profunda crise capitalista. Também seria algo óbvio. Afinal, da mesma forma que o imperialismo foi pego de surpresa pela ação do Hamas, escancarando a sua fragilidade militar, o imperialismo foi pego de surpresa na Ucrânia, onde está sendo derrotado de maneira acachapante pelos russos. Da mesma forma, o imperialismo foi pego de surpresa no Afeganistão, quando as tropas norte-americanas foram expulsas pelo Talibã. A ação dos palestinos é, nesse sentido, resultado da debilidade exposta pelo imperialismo e, ao mesmo tempo, mais um elemento de enfraquecimento de sua dominação.
Mas a tentativa de Eduardo Almeida de apresentar a relação entre a crise do imperialismo e a ação do Hamas deveria ser impugnada. Afinal, para o seu partido, a guerra da Ucrânia não seria o enfrentamento de um governo nacional contra a ordem imperialista, mas sim uma agressão russa à Ucrânia:
“A invasão russa da Ucrânia é uma agressão brutal de uma superpotência militar contra um país historicamente oprimido que jamais ameaçou a segurança russa. Somente isso já seria suficiente para definir nossa posição ao lado do povo ucraniano contra tal agressão” (Todo apoio à Ucrânia! Derrotar as tropas e mercenários de Putin!, Opinião Socialista, 5/3/2022).
Ora, se o caso da guerra da Ucrânia é um caso de enfraquecimento do imperialismo, e o PSTU é contra a ação russa, então seríamos obrigados a concluir que o que protegia a Ucrânia da invasão era o imperialismo! E que, se o PSTU condena a ação russa, teríamos de concluir que o imperialismo seria um fator de progresso e a ação russa, de retrocesso. Trata-se de uma incoerência total, o que já indica que a política que Eduardo Almeida esboça em relação à questão palestina é um improviso, uma tentativa desastrada de orientar o partido diante de acontecimentos que é incapaz de compreender.
O mesmo vale em relação ao Afeganistão. Em sua conta oficial na rede X (antigo Twitter), Vera Lúcia, ex-candidata à presidência da República pelo PSTU, afirmou:
“O PSTU NÃO COMEMORA a tomada de poder pelo Talibã.
Toda minha solidariedade, em especial às mulheres e lgbts afegãs.
Quase ninguém defende as ideias estranhas do PCO sobre isso.”
Em resumo, se Eduardo Almeida pretende se apresentar como defensor da luta dos palestinos, será por outras questões que não propriamente a análise da crise de dominação do imperialismo.
Eduardo Almeida, então, segue para seu próximo argumento: o de que o massacre do povo palestino nada teria a ver com uma luta da “democracia” contra a “barbárie”. Assim o dirigente justifica a sua posição:
“Israel não tem nada a ver com uma ‘democracia moderna’ contra a barbárie árabe. A ‘democracia’ israelense exclui os palestinos e só permite a participação dos judeus israelenses. Está apoiada em um Estado com armas nucleares, mais forte em termos militares que muitos países imperialistas. Existe um cotidiano de repressão brutal, prisões políticas, assassinatos de homens, mulheres e crianças, operados pelo Estado israelense. Não existe nada parecido no mundo hoje. Não se trata apenas de uma repressão violentíssima, mas de limpeza étnica. Ou seja, um fenômeno histórico semelhante ao que o nazismo fazia contra os judeus.”
Só um tonto ou alguém muito mal-intencionado, como André Lajst, chamaria de “democracia” o regime de apartheid de “Israel”. No entanto, ao se dizer contrário a essa concepção, Eduardo Almeida acaba se entregando.
A primeira coisa que chama a atenção no trecho é que, para ele, “democracia” deveria ser escrito entre aspas, mas “barbárie árabe”, não. O dirigente do PSTU considera, portanto, justas as acusações de que os árabes são um povo bárbaro? Fosse “Israel” um país de fato democrático, estariam então justificados os seus crimes contra os palestinos em nome do combate à barbárie, como bem pregava o colonialismo?
Ao que parece, sim. Afinal, na Copa do Catar, em 2022, o PSTU endossou toda a campanha colonial e imperialista feita contra o país durante o evento. A campanha tinha como aspecto central a “barbaridade” dos catarianos, que seriam um povo pouco acostumado aos valores “ocidentais”:
“Na segunda-feira, dia 21, apesar de chamarem a atenção, muita gente pode não ter entendido os gestos que marcaram o início do jogo entre Inglaterra e Irã. De um lado, os ingleses se ajoelharam e o capitão da equipe, Henry Kane, estendeu o braço esquerdo. Do outro, os iranianos ficaram completamente calados enquanto se ouvia o hino nacional de seu país. Mas, ambas as atitudes, apesar de silenciosas (refletindo a censura que ronda a Copa), ecoaram fortemente um protesto mais do que justo e foram estrondosos tapas nas caras do governo do Qatar (como também do nefasto regime de Ali Khamenei, “Líder Supremo” iraniano) e da própria Fifa, em relação a questões que, queiram eles ou não, estão no centro desta edição do torneio: deplorável situação a que mulheres, lésbicas, bissexuais, travestis, pessoas transgêneras e intersexos (LGBTIs) enfrentam no país que sedia a Copa” (Copa no Qatar: A festa começou, mas mulheres e LGBTIs não são bem-vindos, PSTU, 25/11/2022).
A suposta defesa dos palestinos aqui, portanto, não passa de uma defesa de ocasião, de uma necessidade de se colocar ao lado dos palestinos em um momento em que a opinião pública inteira se volta contra o Estado de “Israel”. Em termos programáticos, no entanto, o PSTU é incapaz de fazer a crítica marxista à campanha da “democracia” contra a “barbárie”. A posição de um marxista e de um trotskista em relação ao assunto não é o de explicar o caráter do regime opressor, mas sim o caráter de classe do conflito envolvido. Os palestinos são um povo oprimido e “Israel” é um instrumento do imperialismo. Isto é mais que suficiente para definir quem deve ser apoiado. Se há “democracia” ou não em qualquer um desses países, a questão é irrelevante.
Essa é, afinal, a posição apresentada pelo revolucionário Leon Trótski em famosa entrevista concedida a Mateo Fossa. Disse ele, em 1938:
“Existe atualmente no Brasil um regime semifascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que lado do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil ‘fascista’ contra a Inglaterra ‘democrática’. Por que? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse ela colocaria um outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. É preciso não ter nada na cabeça para reduzir os antagonismos mundiais e os conflitos militares à luta entre o fascismo e a democracia. É preciso saber distinguir os exploradores, os escravagistas e os ladrões por trás de qualquer máscara que eles utilizem.”
A incapacidade de Almeida de citar Trótski neste caso também não é por acaso. Nos últimos anos, o partido ignorou por completo as lições do comandante do Exército Vermelho, defendendo, mundo afora, a “democracia” dos países imperialistas contra os países atrasados.
Em 11 de agosto de 2017, em entrevista ao Programa Opinião, do canal do PSTU no YouTube, o próprio Eduardo Almeida mostrou como seu partido não tinha pudores em se aliar com o imperialismo na luta contra as “ditaduras”, ainda que a “ditadura” em questão fosse um governo nacionalista com amplo apoio popular. Ao criticar aqueles que defendiam o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, contra a tentativa dos Estados Unidos de desestabilizá-lo, Almeida declarou:
“É importante dizer que esses setores estão apoiando uma ditadura. Eles se fazem corresponsáveis de 120 mortos, da repressão que está existindo na Venezuela nos dias de hoje. Isso é um crime. É um problema de princípios não apoiar uma ditadura.”
A defesa superficial que o PSTU faz hoje da causa palestina serve, no final das contas, para encobrir o oportunismo extremo de sua política. Naquilo que é fundamental, o partido não faz qualquer tipo de revisão de sua política, ficando a reboque, portanto, de todas as manobras do grande capital. No artigo que será publicado na edição de amanhã (17) deste Diário, veremos como o apego do PSTU à ideologia oficial do imperialismo o leva também a ter uma política completamente equivocada em relação ao Movimento de Resistência Islâmica (Hamas).