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Victor Assis

Editor e colunista do Diário Causa Operária. Membro da Direção Nacional do PCO. Integra o Coletivo de Negros João Cândido e a coordenação dos comitês de luta no estado de Pernambuco.

Futebol

Por que o Rei Pelé incomoda tanto os negros de alma branca?

Empresário finge defender Vinicius Júnior para atacar o maior atleta do século XX

As ofensas racistas contra o jogador de futebol Vinicius Júnior, do Real Madrid e da Seleção Brasileira, têm provocado uma série de debates no interior da pretensa intelectualidade brasileira. Nenhum deles, infelizmente, diz respeito a uma defesa real de uma das grandes promessas de nosso futebol, mas sim a de interesses mesquinhos e reacionários. É o caso, por exemplo, do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), que aproveitou a prisão daqueles que ofenderam Vinicius Júnior para fazer uma apologia da repressiva monarquia espanhola. E é também o caso de um tal Ricardo Nêggo Tom, cujo artigo publicado no Brasil 247 e intitulado Vinícius Júnior já é maior do que Pelé elogia a postura do atacante do Real Madrid para, na verdade, jogar lama no maior atleta de todo o século XX.

O repugnante texto assinado por Nêggo Tom se resume a uma tentativa de apresentar Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, como um rei da classe dominante. Como uma pessoa que não teria se tornado a majestade dos povos oprimidos do mundo inteiro, mas uma espécie de alpinista social, de lambe botas dos opressores. Em resumo, como um capitão do mato, que teria sido recompensado com o título de “rei” porque seria um “negro da casa”. Essa ideia está presente em trechos como

“Se Pelé e Edson tivessem tido a consciência racial e social de Vini Jr, eles teriam sido deuses de uma raça e não reis de uma falsa humanidade que se entretém relativizando a dor e o sofrimento do outro.”

A opinião de Nêggo Tom vai na contramão do que pensaram todos os negros que vieram antes dele. Dias após a morte do Rei do Futebol, um colunista da maior emissora do mundo árabe, a Al Jazeera, escreveu um artigo cujo título era Pelé significava o mundo para nós, africanos. Nele, Tafi Mhaka conta que:

“Nasci em um mundo cruelmente carente de histórias memoráveis sobre negros e heróis negros universalmente aclamados, um planeta devastado pelo poder político e econômico violento da supremacia branca. Seja na política, ciência, negócios ou esportes, a brancura permeava todos os aspectos concebíveis da sociedade e sistematicamente relegava as pessoas negras às margens da existência humana. Nos diziam que os brancos eram os melhores cientistas, os melhores gerentes de negócios, os melhores atletas. Eles eram os modelos a serem imitados e admirados. Mas sabíamos que isso estava errado. E admirávamos superastros negros como Pelé e Muhammad Ali e revolucionários negros liderando os movimentos de libertação africanos e negros que varriam o continente africano e a América do Norte.”

O texto publicado na Al Jazeera já é mais que suficiente para rebater qualquer ideia de que Pelé servisse a seus opressores, e não aos oprimidos. A maior prova de que ele era o rei dos oprimidos está na própria forma como os oprimidos lhe veem. Está no fato de que os palestinos, mesmo diante do massacre que sofrem há décadas, homenageram Pelé, em sua morte, dando seu nome a um estádio. Está no fato de que um negro de origem muito pobre mostrou aos negros de todo o mundo que eles são capazes, sim, de terem uma posição de destaque na sociedade.

Essa lição, naturalmente, pode ser interpretada por uma parcela dos negros como uma ideia “meritocrática”. Segundo Nêggo Tom, o próprio Pelé teria indicado, em entrevistas, que “bastava se comportarem bem para que fossem bem julgados pela sociedade”. Mas não é isso o que as ações de Pelé dizem, e não é isso o que pensam a maioria de seus admiradores. A lição que Pelé deixou, por sua trajetória de vida, é revolucionária. É a ideia de que o negro é capaz de ir tão longe quanto o branco, mas que, para isso, precisa travar uma luta de mil e um obstáculos. Isto é, tudo o que Pelé fez foi mostrar que a luta pode ser recompensadora. Trata-se, portanto, de um incentivo à luta.

É difícil entender por que Nêggo Tom se considera moralmente superior a Pelé em qualquer sentido que seja. O autor é, ele mesmo, o exemplo mais inescrupuloso do que seja o alpinismo social. Ainda que não conste hoje nas biografias dos textos que escreve, uma rápida pesquisa no sistema eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos mostrará quem é de fato Nêggo Tom:

Ser candidato a vereador pelo Partido da República (PR) é o que pode ser chamado de apelar para a classe dominante. Para quem não conhece o partido pelo qual Nêggo Tom foi candidato no ano em que Dilma Rousseff era derrubada por um golpe de Estado, ele se trata do mesmíssimo partido em que hoje está filiado o ex-presidente Jair Bolsonaro, o Partido Liberal (PL), que mudou de nome em 2019. Chama a atenção também que Nêggo Tom, que se preocupa tanto em se mostrar como um negro “puro”, “consciente”, que estaria em uma posição de total oposição aos “brancos opressores”, tenha colocado sua cor como “parda” no registro eleitoral – cor essa que sequer é reconhecida pelo movimento negro, que a considera um expediente das classes dominantes para diminuir, do ponto de vista estatístico, a presença dos negros na sociedade.

Essa é a história não contada do empresário Nêggo Tom, que procurou subir na vida pedindo um cargo público ao atual partido de Jair Bolsonaro. E qual é a história de Pelé que Nêggo Tom não conta?

Nascido de uma família operária no interior de Minas Gerais, o menino Edson Arantes do Nascimento não era empresário, nem tinha um partido político no qual pudesse se encostar. Desde muito jovem, Edson teve de aprender a se virar para conseguir alcançar os seus objetivos. Para conseguir comprar chuteiras e equipar o seu time de bairro, por exemplo, vendia amendoim. E que, para se sustentar quando estava no início da carreira, engraxava sapatos. Seu nome é uma homenagem ao inventor norte-americano Thomas Edison, e nada poderia ter sido mais bem pensado: Pelé se revelaria como um grande inventor, uma vez que desenvolveria ao máximo a criatividade dos oprimidos, uma necessidade para enfrentar os obstáculos que a vida lhe impõe.

Como todo jogador de futebol pobre, o menino Edson Arantes teve de enfrentar o preconceito da própria família. A família operária, por mais que não conserve os ideais carreiristas da pequena burguesia, sempre se preocupa com o futuro incerto de uma carreira que dura pouco mais de vinte anos e na qual pouquíssimos são bem sucedidos. Mesmo Pelé sendo filho de um jogador de futebol, teve de insistir para que sua família acreditasse em seu potencial. Nesse meio tempo de indecisão, oportunidades foram perdidas.

Já depois de se consagrar como titular do Santos Futebol Clube, o menino Pelé, quando ainda sequer tinha o direito de dirigir, já sentia nas costas o peso de representar uma seleção que frustrou todos os seus torcedores ao ser derrotada em casa, oito anos atrás, na Copa do Mundo de 1950. Pelé enfrentou toda a pressão contra os craques e, ainda menino, se mostrou decisivo para o primeiro título mundial do Brasil. Já naquele momento, aos 17 anos, foi alcunhado de Rei do Futebol.

Quisesse Pelé apenas prestígio social, teria aproveitado a sua fama para parasitar em torno do futebol nacional. Mas não. Patriota, o rei foi servir ao Exército, mostrando o seu espírito de fato proletário. Edson Arantes não queria privilégios, não queria ser melhor que ninguém. Apenas queria dar o seu melhor nas tarefas que se apresentavam diante dele. E ele deu, sendo campeão e artilheiro nas forças armadas.

E assim foi Pelé ao longo de toda a sua carreira. Foi isso que permitiu que ele, ainda que marcado de forma implacável pelos brutamontes europeus, ainda que perseguido de maneira criminosa pelos abutres da grande imprensa, trouxesse para a Seleção Brasileira mais dois títulos mundiais, realizando um feito insuperável. Foi esse espírito combativo, de luta, de nunca se dobrar diante das dificuldades, que fez com que Pelé chegasse a seu milésimo gol.

A grande lição que Pelé deixou, portanto, é a de que o negro deve andar de cabeça erguida. Que ele deve lutar. Que ele não deve desistir, ainda que as dificuldades sejam muito difíceis. Que ele deve apelar para a solidariedade dos seus irmãos de classe. Que ele deve combater cada obstáculo racista com determinação. Que ele deve encarar os seus opressores como iguais. Quando figuras execráveis da história mundial, como a Rainha Isabel, do Reino Unido, e Ronald Reagan, dos Estados Unidos, se curvaram diante de Pelé, eles não estavam agradecendo a Edson Arantes por seu serviço prestado no campo do entretenimento. Eles estavam reconhecendo a sua inferioridade diante de uma figura de envergadura mundial. É como se dissessem: “você, Pelé, por sua luta, mostrou ao mundo que somos apenas burocratas, pessoas que chegaram aos mais altos níveis do poder público por nossa mediocridade. Você mostrou que de nada vale o título que nós ostentamos. Você mostrou o que é ser um verdadeiro rei. Por isso, não há como eu não me curvar perante vossa majestade”. E assim Pelé se tornou o maior embaixador não apenas dos negros, mas de todos os brasileiros no mundo inteiro.

O empresário Nêggo Tom deveria bater na porta de qualquer sede de qualquer organização séria do movimento negro no mundo inteiro e perguntar: o que você acha da história do Rei Pelé? O que você acha de um negro que, por sua história de vida, colocou abaixo os mitos que justificavam a superioridade do branco na sociedade? Quantos meninos de qualquer favela do Rio de Janeiro não foram libertos pela ação revolucionária de Pelé? Quantos deles hoje não baixam a cabeça nem mesmo para a polícia, por que sabem que a luta do negro na sociedade não é em vão?

O que acontece é que Nêggo Tom não convive com nenhum movimento negro real. Os negros que ele conhece não são os negros da favela do Rio de Janeiro, que sofrem todos os dias nas mãos da Polícia Militar. São os negros das universidades, para quem a luta pela sobrevivência já não é mais um problema. São os negros que estão muito mais ocupados em produzir dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre a questão racial. Que, de tão incorporado ao regime político, acham que são capazes de competir com os brancos e, assim, tentam competir com eles, e não lutar contra eles. São negros que chamam a polícia para resolver os seus problemas, que se filiam em partidos burgueses para tentar conseguir alguma vantagem social e que são capazes de reduzir a pó o seu colega de cor na briga por um cargo público. São negros que, de tão cooptados pelo regime, já não são mais negros. São os famosos negros de alma branca.

É por isso que Nêggo Tom diz coisas imbecis como “Pelé parou uma guerra servindo de entretenimento para os opressores, e não como salvação para os oprimidos”. De tanto conviver com a classe média, ele acha que futebol é como o golfe ou o beisebol. É como um passatempo, e não uma manifestação cultural de massas. Ele não entende que, enquanto a classe média decadente divide o seu tempo entre encontrar alguma forma de passar uma rasteira em alguém para subir na vida e entre usar drogas, sair com prostitutas e torrar todo o seu dinheiro com todo tipo de atividade improdutiva, o trabalhador, que é um elemento ativo na sociedade, tem no futebol uma paixão. Entre uma jornada e outra de trabalho, ele vai ao estádio. Entre uma feira e outra, ele compra um ingresso, não importa o preço que for. Ele dorme mais feliz quando seu time ganha, e, muitas vezes, mais feliz ainda quando o seu time adversário perde. Saber sobre futebol é um passaporte para a sua vida social, é o grande assunto quando estiver no bar ou no intervalo do trabalho. O futebol e a vida dos oprimidos estão intimamente interligadas. Nenhuma classe dominante irá abrir mão de seus interesses por causa de um jogo de futebol. Para os oprimidos, no entanto, pouca coisa tem a capacidade de promover tanta solidariedade.

As concepções carreiristas de Nêggo Tom, além de exporem o quanto o autor é ridículo, ainda causam um efeito muito negativo sobre os jogadores brasileiros, que nada têm a ver com o que o empresário quer fazer da vida. Vinicius Júnior, que não passa de um jogador de futebol muito habilidoso que reagiu, da forma como pôde, às ofensas que sofreu, é apresentado pelo empresário como se fosse, ele próprio, um elemento de classe média:

“Vinícius parecia só na sua luta contra a crueldade racista. Pouquíssimos jogadores de futebol se manifestaram em apoio a ele. Seus parceiros de seleção brasileira, incluindo o privatizador de praias Neymar, quando se posicionavam, era de forma protocolar e rasa. Pareciam não se incomodar com os crimes raciais cometidos contra um ser humano colega de profissão. Nem mesmo alguns companheiros de clube estavam dispostos a lutar com ele. Ainda que fosse para preservar as suas próprias dignidades da condição de cumplicidade por omissão ou descaso. Nada.”

Ao contrário de Nêggo Tom, o jogador brasileiro nunca quis fazer das ofensas contra ele um trampolim para se promover. Ele nunca se opôs aos demais jogadores, nunca quis ser melhor que ninguém. Por mais que haja uma forte pressão para que Vinicius Júnior adira ao discurso repressivo da esquerda identitária, ele não é nem político, nem intelectual. Sua posição vai no sentido correto: ele acha que não deve sofrer calado. Mas é só isso. Ele, nesse sentido, é um negro pobre que aprendeu com Pelé que o seu lugar não é no pelourinho. Não há em seu discurso uma tentativa de ser melhor que ninguém. Não há em seu discurso uma tentativa de conseguir algum privilégio por ser negro, não há em seu discurso uma tentativa de conseguir algum privilégio por ser um negro “consciente”. Isso tudo é a interpretação que Nêggo Tom faz do jogador, pois ele é incapaz de entender o caráter da reação do negro oprimido.

O negro oprimido, pobre, aprende desde cedo que seu inimigo é a polícia. E que, portanto, para combater seu inimigo, é preciso reunir forças. É preciso apelar para seu vizinho, para sua família. É preciso se unir com a pessoa que torce para outro time, é preciso se unir com a pessoa a qual não gosta, é preciso se unir com quem tem mais dinheiro, é preciso se reunir com quem tem menos dinheiro. É uma política de unidade. Nêggo Tom, no entanto, aprendeu que, para o negro, a vitória virá pisando sobre a cabeça de todos. É isso o que ele quer dizer quando inicia o artigo dizendo que “racismo não se desculpa, não se ignora, e com racista não se dialoga civilizadamente, porque racista não é civilizado”. Para ele, ser “antirracista” é como ter um mestrado: conta pontos a mais na hora de fazer um concurso público. E, por isso, Nêggo Tom tenta pintar um Vinicius Júnior que não existe.

Da mesma forma, o empresário mostra como, no final das contas, é muito mais atrasado politicamente do que aquele que tanto critica, o Rei Pelé. Ele chama Edson Arantes de “homem preto aculturado” por dizer que “no Brasil existia mais preconceito social do que racial”, como se isso fosse o mesmo que dizer que o racismo não existe. Fato é que Pelé acertou em cheio quando disse tal coisa. O que faz a polícia reprimir violentamente o negro não é um “preconceito”, mas, sobretudo, o fato de que a figura do negro e do pobre se confundem. Nêggo Tom não reconhece isso porque, em primeiro lugar, ele não convive com a classe operária, e, em segundo lugar, porque dizer tal coisa não é conveniente para a classe média. Afinal, se o problema for social e não racial, como o racismo poderá ser utilizado por um negro de classe média para ganhar uma boquinha?

Edson Arantes do Nascimento, independentemente de suas formulações sobre o racismo, foi, até o final de sua vida, uma figura que nunca esqueceu suas origens. E, nesse sentido, sempre foi uma pessoa muito mais consciente que os negros da academia. Seu milésimo gol foi dedicado às criancinhas do Brasil. Não há maior demonstração de que Pelé pertence ao clube dos oprimidos que isso. No momento mais glorioso de sua carreira, ele não estava preocupado em ser melhor que ninguém, não estava preocupado em defender nenhum privilégio. Ele olhou pelo retrovisor, viu toda a sua história, reconheceu que a sua história era a mesma história de dezenas de milhões de pessoas e disse: que nenhuma criança tenha que sofrer o que sofri para andar de cabeça erguida.

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