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Coluna

Paulo Vanzolini 100 anos; a ciência e o samba

Um dos principais nomes da zoologia brasileira, Vanzolini está entre os maiores compositores da música popular brasileira

“Dor de amor não me magoa
A saudade da garoa é que me mata”

Certa vez, Elis Regina comentou: “desde Adoniran Barbosa a Paulo Vanzolini, o compositor paulista é o grande esquecido nos grandes momentos da música brasileira“. Essa fala aparece incidentalmente num disco ao vivo da cantora. Tal injustiça, tão bem apontada por Elis, não ficou no passado.

Hoje, dia 25 de abril, um dos maiores compositores da música popular brasileira completaria 100 anos; Paulo Emílio Vanzolini nasceu em São Paulo em 1924. Apesar da importante data centenária, com uma breve pesquisa na Internet, o leitor notará que pouco está sendo dito sobre ele. Até o fechamento da edição deste Diário, enquanto preparava esta coluna, uma breve pesquisa no Google mostrava apenas duas menções ao centenário do compositor: um especial da Rádio Senado e um concerto ocorrido no último final de semana no SESC, organizado pelo amigo e parceiro do compositor, Eduardo Gudin.

Talvez nesta quinta-feira, dia exato do centenário, apareça algum artigo na imprensa capitalista ou na imprensa alternativa. Certamente, seja lá o que for feito, não será do tamanho da importância de Paulo Vanzolini.

Mas se o compositor paulista é injustiçado, o que dizer, então, do cientista brasileiro? Paulo Vanzolini, antes de ser compositor, foi um dos principais zoólogos brasileiros, entre os mais importantes do mundo nesse ramo da biologia.

Formado em medicina na USP, em 1947, sua vocação sempre foi a biologia. Segundo ele mesmo contou em várias entrevistas, aos 10 anos de idade, fez um passeio pelo Instituto Butantã e se apaixonou pelo estudo das serpentes. Aos 14 anos trabalhou como estagiário no Instituto Biológico.

A formação em medicina facilitou o estudo no exterior. Em 1949 foi para Harvard onde fez o doutorado especializando em herpetologia, ramo da zoologia que estuda anfíbios e répteis.

Em todas as oportunidades, em suas entrevistas, Vanzolini fazia questão de frisar que ele era um cientista e que a música estava em segundo plano. Tanto que sua dedicação à zoologia durou até o fim de sua vida.

Vanzolini foi nomeado diretor do Museu de Zoologia da USP em 1963 e nunca mais parou de trabalhar ali. Também em várias entrevistas, Vanzolini afirmou que o dinheiro que ganhava com suas músicas usava em melhorias para o museu. Ele aumentou as amostras de répteis e anfíbios do museu de 1.200 para 230 mil.

Em suas pesquisas de campo, Vanzolini descobriu novas espécies de animais e descreveu várias delas. Algumas espécies levam seu nome.

Mas a principal descoberta de Vanzolini foi a Teoria dos Refúgios, elaborada em conjunto com o geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber e o biólogo norte-americano Ernest Williams. Nela, se explica a origem da enorme biodiversidade da Amazônia e da Mata Atlântica. Em eras anteriores, a floresta teria se expandido e encolhido várias vezes. Durante as eras glaciais, o clima árido fazia com que fossem mantidas apenas pequenas ilhas ricas em vegetação. Ali, novas espécies isoladas surgiam. Nos períodos interglaciais, de maior umidade, essas ilhas de vegetação voltavam a se juntar, e as novas espécies surgidas isoladamente acabavam por se misturar.

Impossível descrever no detalhe toda a contribuição de Vanzolini para a biologia brasileira. Mas está claro que Vanzolini foi um verdadeiro cientista, um homem inquieto, focado em pesquisar e realizar suas descobertas.

E enquanto fazia tudo isso, Vanzolini compunha sambas. Foi frequentando o Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito, que ele começou a compor.

Como muitos sambistas, compunha suas letras e melodias de cabeça para depois repassar para os músicos. Como ele mesmo afirmava, era um compositor que “não sabia a diferença entre um tom menor e o maior”.

Cientista e homem culto, as letras de seus sambas são refinadas. Era bom de rima, segundo outro personagem culto da música popular brasileiro, Francisco Buarque de Holanda, que afirmou que foi vendo e ouvindo Vanzolini rimar que pegou gosto pela rima. O zoólogo da USP era amigo pessoal de outro professor da mesma universidade, Sérgio Buarque de Holanda. Vanzolini frequentava a casa da família e foi ali que Chico, ainda criança, teve contato com as rodas frequentadas pelos amigos do pai, entre eles, Vanzolini.

Na contracapa do disco Onze sambas e uma Capoeira, de 1967, com músicas até então inéditas do compositor, Chico Buarque afirma: “minha amizade com Paulo Emílio Vanzolini está fazendo 21 anos. Trata-se, pois, duma afinidade maior, de idade e de samba. Já naquele tempo, ele fumava cachimbo, batia caixinha e varava a noite em assuntos de garoa, amigos e boemia. E a certa altura, Paulinho passava a conversar em rimas, numa agilidade de fazer inveja a muito repentista do Nordeste. Com meus dois anos, mal aprendendo a falar, talvez tenha herdado daí o gosto, quase vício, das rimas. Quanto à boemia, confesso que eu ainda não era dado a tais coisas”. Nesse disco, Chico interpreta duas canções do compositor paulista, Samba Erudito e Praça Clóvis. Ele também gravou, na caixa coletânea Acerto de Contas, a música Quando eu for eu vou sem pena.

Vanzolini sempre foi fiel ao samba e às raízes da música popular brasileira. Junto com Adoniran Barbosa, que ele considerava um gênio “fora de série”, Vanzolini nos passa um retrato da cidade de São Paulo, a boemia, os relacionamentos, os tipos. Ele transmite também, em suas melodias, essa característica tão específica, desse sotaque tão próprio do samba paulista: o samba moderno, ritmo essencialmente urbano, mesclado com as influências rurais da cultura caipira.

Voltando a Elis Regina, Adoniran, o mais famoso dos compositores paulistas, e Vanzolini, o segundo mais conhecido, são apenas ótimas amostras do que o estado mais populoso do País foi capaz de dar em matéria de música popular, em particular, de samba. Ambos são os mais lembrados entre os esquecidos, os quais devemos citar Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro, Zeca da Casa Verde, Talismã e muitos outros compositores e sambistas, da velha guarda e das novas gerações, que fizeram de São Paulo a melhor paisagem de suas canções.

Segundo contou em entrevista a Antônio Abujamra, foi na fazenda de seu bisavô, um italiano que se radicou no interior do Paraná, onde foi fundada a Colônia Cecília, em 1890, uma comunidade anarquista no Brasil. Talvez por essa influência na família, Vanzolini afirmava ser um “socialista utópico”.

Além de grande cronista de São Paulo, a obra de Vanzolini é rica em tiradas irônicas e bem humoradas, histórias politicamente incorretas, que hoje parecem que foram feitas sob medida para os identitários, inimigos da arte e da cultura popular, os “canceladores” inquisidores atuais: “mulher que se vira pra outro lado/tá convocando a suplente/mulher que não ri não precisa dente” (Mulher, toma juízo!) ou “Maria que ninguém queria/eu resolvi reformar” (Maria que ninguém queria) ou ainda “mulher que não dá samba eu não quero mais” (Mulher que não dá samba).

Como não há espaço para citar tantas canções que estão entre as obrigatórias para quem quer compreender a música popular brasileira, deixo aqui alguma amostra. Seus dois maiores sucessos, Ronda (“E neste dia, então/Vai dar na primeira edição:/Cena de sangue num bar/Da Avenida São João”) e Volta por Cima (“Um homem de moral não fica no chão/Nem quer que mulher/Lhe venha dar a mão/Reconhece a queda e não desanima/Levanta, sacode a poeira/E dá a volta por cima”) dispensam apresentação.

Indico, se me permite o leitor, dois discos: A música de Paulo Vanzolini (1974), interpretado magistralmente por Carmen Costa e Paulo Marques, e Paulo Vanzolini – por ele mesmo (1981), único disco no qual o próprio compositor canta suas canções. Nesses dois discos há grandes interpretações como Teima quem quer (Deus sabe o dia e a hora/Aperta mas não sufoca”), Falta de mim (“Com a muita raça que tem/Leva essa farsa até o fim/Mas traz escrita na testa a falta de mim”), Cara Limpa (“Já me acostumei com o dia a dia/Em vez de vida inteira/Relógio em vez de retrato na cabeceira/Posso lhe dizer que olho pra ela e nada sinto/Posso lhe dizer/Com a cara limpa enquanto minto/Posso lhe dizer”), Bandeira de guerra (“Minha bandeira de guerra/Meu pé de briga na terra/Meu direito de ser gente”), Samba do Suicídio (“E tomei formicida/E tive a maior surpresa de minha vida/Descobrindo assim/Que o que andavam servindo/Aqui no botequim/Não era Tatuzinho/Chá de briga/Era tatu mesmo/O fazedor de ‘orfe’ de formiga”), Cravo Branco (“Ela lhe deu o cravo/O outro se ofendeu/Ele olhou no revólver/Dava tempo e não correu/Dobrou os joelhos, desabou no chão/Os olhos redondos/E o cravo branco na mão/Ai, o pobre, caído no chão/De bruços no sangue/Com o cravo branco na mão”) e Alberto (Alberto/Foi morar na casa da noiva e não deu certo/Alberto era bom demais), apenas para fazer uma seleção arbitrária de canções.

Há, ainda, a caixa coletânea Acerto de Contas, lançada em 2002, com quatro discos. Estão ali quase a totalidade de suas canções, interpretadas por grandes nomes, acompanhadas pelos melhores músicos de choro. O “acerto de contas”, diz o próprio compositor, é com os músicos a quem ele deve a qualidade de sua obra.

No centenário de Paulo Vanzolini, o zoólogo compositor, nossa principal preocupação é fazer desse grande artista brasileiro um pouco mais conhecido, é fazer justiça com a nossa cultura popular e, nesse caso, também com a nossa cultura erudita.

Para terminar o texto, deixo a letra da canção Longe de Casa, parceria de Vanzolini com Eduardo Gudin, um dos mais belos sambas-exaltação à cidade de São Paulo:

“Longe de casa eu choro e não quero nada
Pois fora do chão ninguém quer e não pode nada
Sinto falta de São Paulo
De escutar na madrugada
Uns bordões de violões
E uma flauta a chorar prata

Dor de amor não me magoa
A saudade da garoa
é que me mata
E eu saio pra rua
Assobiando comprido
Um samba comovido
Que Sílvio Caldas cantasse
E me iludo que a garoa
Vem molhar a minha face

Mas é pranto e eu choro tanto
Quem me dera que hoje mesmo
Eu voltasse pro chão que eu adoro
Pois longe de casa
Eu choro e não quero nada.”

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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