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Coluna

Para onde vai Erdogan?

O sultão neo-otomano é uma esfinge

O envolvimento direto da Turquia de Erdogan no golpe contra Bashar al-Assad deixou um enorme setor dos apoiadores da Palestina com um ódio mortal contra o presidente turco. O homem que muito fala contra o sionismo, que constantemente chama Netaniahu de Hitler, ajudou a derrubar um dos governos do Eixo da Resistência, que ajudava a armar a resistência contra “Israel”. Muitos consideram que ele é um lacaio do imperialismo a serviço dos sionistas. Mas o nacionalismo turco, na conjuntura geral do Oriente Médio, apresenta muitas nuances complexas.

Alguns fatores são cruciais para analisar o governo da Turquia. Primeiro, apesar de ser um país da OTAN, um dos mais importantes, atua de forma dissidente dentro do bloco. A própria ação na Síria contra as milícias dos curdos faz a Turquia se chocar com o maior poder da OTAN, os Estados Unidos. Para evitar o caos, eles dividiram o exército em duas partes, um que atua dentro da OTAN e um que atua na Síria.

Segundo, Erdogan pode muitas vezes facilitar a política do imperialismo, mas ele claramente não é o governo que o imperialismo deseja para a Turquia. Em 2016, uma tentativa de golpe de Estado foi derrotada, com ajuda dos russos, o que fortaleceu muito a ala nacionalista do governo. Em 2023, o imperialismo realizou uma campanha gigantesca para derrubar Erdogan nas eleições e colocar o seu candidato. Erdogan saiu vitorioso e manteve o governo federal, mas em 2024, perdeu eleições importantes nas grandes cidades para o partido aliado ao imperialismo.

Ou seja, o presidente da Turquia, ao mesmo tempo que faz o jogo do imperialismo em muitas ocasiões, também se choca com ele em outras. É um fenômeno que se tornou possível com o enfraquecimento do imperialismo mundial, permitindo que governos migrem para uma política de combate contra o imperialismo sem passar por grandes mobilizações populares. O caso onde isso se expressou de forma mais bem acabada foi na Rússia, onde a luta contra a OTAN levou a uma guinada anti-imperialista enorme no regime político.

Voltando ao caso da Síria, a posição de Erdogan não é de aliança com o Eixo da Resistência, mas também não é a política dos norte-americanos e dos israelenses. Ele fez uma frente com o imperialismo para derrubar Assad, agora, imediatamente após sua derrubada, está prestes a se chocar violentamente com os mercenários curdos aliados dos EUA. Essa não é a primeira vez que isso acontece, a guerra com esses curdos já acontece desde 2018, mas agora se encaminha para uma guerra total.

Ao se analisar o golpe de Estado contra Assad, isso também fica claro. Ao que tudo indica, o ataque do HTS (ex Al-Qaeda na Síria) foi, em grande parte, planejado pela Turquia. Mas esse ataque tinha como objetivo desestabilizar a cidade de Alepo para que Erdogan pressionasse Assad. O golpe de Estado foi decidido apenas depois que a cidade caiu, naquele momento ficou claro que o governo estava muito fraco. E quem decidiu o golpe não foi Erdogan, foi o governo Biden. Os EUA aproveitaram a deixa nos últimos meses do atual governo para ter uma vitória, mesmo que improvisada.

Erdogan, que não iria se chocar com os norte-americanos sabendo que eles estavam prestes a vencer, então entrou no plano do golpe de Estado. Mas assim que o governo caiu e os russos e iranianos foram retirados como força política no país, uma nova realidade surgiu. De um lado, Erdogan; do outro, EUA e “Israel”. Ou seja, a Turquia, sendo um país oprimido que tem uma política própria, necessariamente se choca com o imperialismo. Nessa situação, sempre é possível um acordo, mas uma guerra está prestes a estourar no nordeste da Síria.

A questão do Curdistão

A população de curdos na Turquia sempre foi uma questão para o Estado, são uma grande minoria oprimida que, a partir da década de 1980, lançou uma guerrilha. São considerados terroristas pelo governo turco por isso. Ao mesmo tempo, esses mesmos curdos, do outro lado da fronteira, foram armados até os dentes pelos EUA que criaram as Forças Democráticas Sírias. Esse é o nome oficial da milícia que tomou conta do nordeste da Síria com o único objetivo de enfraquecer o governo Assad.

Do ponto de vista da Turquia, isso é uma ameaça gigantesca, um movimento separatista que tem um de seus braços diretamente armado pelos EUA! Esse braço evita se chocar com a Turquia, mas o perigo é claro e o maior momento de perigo aparece justamente com a queda de Bashar al-Assad.

O que acontece é que, com o esfacelamento do Estado sírio, é possível que o país se divida em várias nações, naturalmente, uma delas seria o Curdistão. Ou seja, o maior pesadelo da Turquia pode estar prestes a acontecer: um Estado curdo, aliado dos EUA, em uma de suas fronteiras organizado pela seção síria do mesmo partido curdo, o PKK, que trava a luta armada contra a Turquia para tornar independente um enorme território do país.

Erdogan não está disposto a deixar isso acontecer. Imediatamente após a queda de Assad, mandou um enorme contingente de tropas para a fronteira e começou a bombardear a milícia curda aliada dos EUA. Agora, os dois países da OTAN estão prestes a iniciar uma guerra por procuração dentro da Síria. Está aí a contradição inevitável entre nações oprimidas e o imperialismo.

Até o fechamento deste texto, um frágil cessar-fogo havia sido assinado entre o governo dos EUA e da Turquia. Mas os curdos se preparam para o pior. A Turquia está prestes a invadir a segunda mais importante cidade do Curdistão sírio e depois tomar Raca, a cidade mais importante controlada pelos curdos. Depois disso, faltaria apenas uma cidade grande para encerrar a fatura.

A questão, então, é como os EUA irão lidar com essa invasão? Eles já derrubaram o governo Assad, a existência das milícias curdas não é mais tão importante. Mas, ao mesmo tempo, os curdos são aliados muito mais firmes do que a Al-Qaeda e o governo da Turquia. Em última instância, os curdos são totalmente dependentes dos EUA na atual situação em que se colocaram.

Se a intervenção do imperialismo for muito violenta, a Síria pode entrar em uma nova etapa da guerra em que tudo é possível. Se for pouco violenta, o imperialismo pode sofrer uma derrota diante do governo da Turquia.

O que complica toda a análise é que, ao mesmo tempo que há o avanço militar, todos os agentes estão em constante diálogo para fechar um possível acordo. Erdogan e EUA têm contato direto com o novo governo da Síria. EUA e Turquia têm um contato direto. E o novo governo da Síria está em contato direto com os curdos.

Os turcos, no entanto, deixaram claro que a era da milícia curda na Síria acabou, ou se desarmam ou serão esmagados. Resta saber se terão força para impor a sua política de choque direto com um dos maiores aliados dos EUA no Oriente Médio.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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