Não seria exagero dizer que William Shakespeare foi o maior dramaturgo da história das artes cênicas, desde as primeiras experiências do teatro grego, por volta do século VI a.C. É, em todo o caso, indene de dúvidas que as suas peças foram a que mais tiveram encenações por todos os cantos do mundo, com traduções para todas línguas modernas e as mais diversas adaptações na literatura e no cinema.
“Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “Rei Lear” e “Otelo” foram não só exaustivamente encenadas mas serviram de ponto de partida para a criação e o desenvolvimento do Teatro Moderno. Ou seja, encontram-se ecos das tragédias e comédias shakespearianas em toda a produção cênica subsequente.
Para pegarmos o exemplo de “Otelo”, cuja tragédia teve como esteio a intervenção diabólica do personagem “Iago”, pode-se encontrar reverberações dessa história em peças teatrais de José de Alencar a Nelson Rodrigues, respectivamente através das peças “Demônio Familiar” e “Toda Nudez Será Castigada”, cada uma com os seus respectivos “Iagos”. Em Alencar, na figura de “Pedro”, um escravo que se utiliza de vivacidade e malícia para tumultuar a vida doméstica e satisfazer os seus interesses pessoais; e em Nelson Rodrigues pela na figura de “Patrício”, outro manipulador que corrompe tudo e todos que gravitam ao seu redor. Obviamente, os dois exemplos do teatro nacional se estendem a todo o resto do mundo.
A despeito da ampla repercussão das obras de Shakespeare, há muitas lacunas na biografia do artista, o que talvez se justifique por se tratar de um homem que viveu e atuou no século XVI, há mais de quinhentos anos, portanto. Quando escreveu a maior parte de suas peças, havia pouco mais de um século que os Europeus atingiram a América pela primeira vez; há noventa anos de diferença entre as principais peças do escritor inglês e a descoberta do Brasil, para se ter uma dimensão.
As primeiras alusões ao nome de Shakspeare em documentos históricos datam de 1592 quando foi publicada na imprensa londrina uma crítica (desfavorável) de uma de suas peças. No início do século subsequente, poucos anos após a sua morte, houve a primeira compilação de suas peças.
Sabe-se que o grosso da atividade intelectual do dramaturgo deu-se entre 1590-1613. Há até hoje o registro de 38 peças de Shakespeare, além de poemas e sonetos. Àquele tempo, não havia uma divisão de tarefas envolvendo o autor do roteiro, o diretor, o ator, o empresário e a equipe técnica. As companhias de teatro da época eram formadas por dez a quinze membros e funcionavam como cooperativa. Todos recebiam e participavam dos lucros. Além de escrever as peças, Shakespeare atuava como ator e o que poderíamos dizer, não sem algum, anacronismo como “empresário” que articulava e comercializava as encenações.
Os teatros da era elisabetana eram feitos de madeira, a céu aberto, com um palco que se projetava à frente, em volta do qual se punha a plateia de pé. Ao fundo havia duas portas, pelas quais os atores entravam e saíam. Não havia cenário, de tal forma que a peça começava com a entrada do primeiro ator e terminava à saída do último. Como havia uma grande proximidade do público – mormente se considerando inexistir microfone ou aparelhos amplificadores de som – trejeitos e expressões faciais dos atores eram bem percebidas. Em nenhuma hipótese havia atriz: mesmo as personagens femininas eram desempenhadas por homens.
Estima-se que milhares de pessoas assistiram as encenações de Shakespeare.
As peças foram já àquele tempo reunidas e comercializadas em livro. (O advento da imprensa através do trabalho de Johann Gutenberg deu-se cerca de 150 anos antes do nascimento do dramaturgo). As informações disponíveis indicam que o Shakespeare terminou a vida em boas condições financeiras, o que se deu através do êxito de seu trabalho como dramaturgo. Contudo, ao final da vida, as encenações foram prejudicadas por conta da disseminação na peste negra na Inglaterra.
“Otelo” pertence ao rol das maiores tragédias de Shakespeare. Há nela todos os elementos da tragédia grega e o protagonista Otelo reúne as qualidades do herói trágico grego: um homem de ação, dotado de força e iniciativa, sem a introspecção e atividade reflexiva que o desmobilizasse.
A história se passa em Veneza e na ilha de Chipre, dentro do contexto da guerra travada entre o Império Otomano e a República de Veneza (1499–1503). O protagonista que dá nome à peça é um dirigente militar, respeitado por suas habilidades de guerras e pelo seu histórico em defesa do povo de Veneza. Mas, por outro lado, era um mouro, identificado com a cor negra dos povos do norte da África e por isso não aceito como parte da nobreza da República.
Otelo apaixona-se e casa-se secretamente com Desdêmona, filha de um senador de Veneza chamado Brabâncio, que rejeita a filha após ter ciência do casamento, acreditando ter sido ela enfeitiçada para aceitar o relacionamento com um homem de cor. O amor de Desdêmona, como se demonstrará na peça, é sincero e puro: o que lhe atrai em Otelo é o histórico de aventuras, lutas e guerras travadas pelo Mouro.
Iago, um alferes de Otelo, é preterido para um cargo de militar de Tenente, despertando o ódio que levará à vingança. Toda a atividade diabólica desse personagem tem como ponto de partida o ressentimento pela rejeição ao posto militar e a pretensão de destituir o escolhido ao cargo (Cássio) através da manipulação sub-reptícia e do estimulo sorrateiro aquilo que há de pior no homem.
Num primeiro momento, estimula Cássio a se embriagar, sabendo que o nobre tenente não tinha experiência prévia com a bebida. Em paralelo, articula com Rodrigo, um jovem que ama Desdêmona, a forjar uma briga com Cássio para desmoralizar o tenente perante o Mouro.
Depois de conseguir a destituição de Cássio ao cargo, Iago passa a fazer ilações sobre a fidelidade de Desdêmona. Paulatinamente, vai despertando a desconfiança do Mouro em relação a sua mulher, dizendo ter avistado conversas e trocas de intimidade entre Desdêmona e Cássio.
Otelo, cuja nobreza foi testada através da sua atividade militar em defesa de Veneza, vai tendo a sua moral minada pelo sentimento de ciúmes. Por ser negro, sente-se inferior a Cássio e sua mulher, e a sua desconfiança vai sendo estimulada pelas insinuações de seu alferes. Os ciúmes é um sentimento mal que brota do homem, dentro de si mesmo. Iago constitui a força do mal que luta contra o bem pela posse da alma humana.
O fim trágico da peça, em que Otelo mata Desdêmona para na sequência descobrir a inocência de sua mulher, revela a capacidade de Iago (que consubstancia o Mal) de corromper tudo a sua volta e utilizar-se da boa índole de alguns para manipular e destruir outros.
Ao deixar-se sucumbir pelos ciúmes, Otelo permitiu que a parcela do mal que reside em sua alma prevalecesse sobre os demais aspectos nobres de seu caráter. É condenado ao inferno e como meio de redimir ao seu erro trágico, tira a sua própria vida, na passagem final da peça.