O escritor britânico e ativista Tariq Ali escreveu um artigo para o jornal inglês New Left Review, reproduzido pelo Esquerda Online e traduzido como Caminhos de Damasco, analisando os desdobramentos recentes da Síria. Já no primeiro parágrafo, o esquerdista sentencia: “ninguém, além de alguns poucos comparsas corruptos, deve estar derramando lágrimas pela partida do tirano”. Claro que “tirano” aqui é o presidente derrubado Bashar al-Assad, e não o homólogo norte-americano, Joe Biden, ou o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netaniahu, como que para esclarecer que sua análise é, acima de tudo, uma defesa da verdadeira tirania: a que oprime os povos do Oriente Médio. Ali continua:
“Como o Iraque e a Líbia, onde os EUA têm o controle do petróleo, a Síria irá se tornar agora uma colônia compartilhada americano-turca. A política imperial dos EUA, globalmente, é quebrar os países que não consegue engolir inteiros e remover toda soberania significativa no intuito de garantir a hegemonia econômica e política. Isso pode ter começado ‘acidentalmente’ na antiga Iugoslávia mas desde então se tornou um padrão. Os satélites dos EUA usam métodos similares de garantir que países menores (Geórgia, Romênia) sejam mantidos sob controle. A democracia e os direitos humanos pouco têm a ver com isso. É uma jogada global.”
Curiosamente, o parágrafo de Ali apresenta uma análise precisa sobre as consequências mais imediatas da política imperialista, que se reflete na desestabilização de países como a Síria, traçando paralelos com o Iraque e a Líbia, onde os interesses dos EUA, especialmente no que diz respeito ao petróleo e à manutenção de sua ditadura, foram determinantes. Apesar disso, no entanto, o autor reserva ao ex-líder sírio o epíteto dado pelos EUA, “tirano”, marcando, assim, uma política que ignora completamente o apoio do nacionalismo sírio à Resistência e o fato de que a queda de Assad não foi obra de forças dedicadas ao progresso sírio ou à luta contra a dominação imperialista em seu país. Pelo contrário, a vitória das forças mercenárias que derrubaram o líder sírio marca um aprofundamento do atraso do país árabe, o que o próprio autor reconhece, ao que também acrescenta:
“Agora, a deposição de Assad criou um tipo diferente de vácuo – que provavelmente será preenchido pela Turquia da OTAN e pelos EUA através do ‘ex-al-Qaeda’ Hayat Tahrir al-Sham (o rebranding de seu líder Abu Mohammad al-Jolani como combatente da liberdade após seu período em uma prisão estadunidense no Iraque não é nada de surpreendente), assim como por Israel. A contribuição de Israel foi enorme.”
Isso revela uma contradição séria na análise, pois, ao focar no tal despotismo de Assad, o autor parece tolerar, mesmo que sem afirmar abertamente, não apenas os riscos de uma balcanização da Síria, mas também a derrota da Resistência, em troca de um suposto “tirar o tirano do poder”. Ao final, o que se sugere é que, para o autor, a satisfação moral de destituir um “tirano” justifica os efeitos colaterais devastadores de tal ação, mesmo sabendo que o remédio pode ser muito pior do que a doença original, sem que, no fim, surja qualquer avanço, mesmo nos limitadíssimos marcos da “democracia e direitos humanos”, nem para o povo sírio, nem para qualquer outro povo submetido à ditadura imperialista.
“Mesmo que os rebeldes tenham libertado alguns prisioneiros políticos de Assad, logo irão substituí-los pelos seus próprios prisioneiros políticos”, conclui Ali, trazendo um encaminhamento relativamente óbvio da crise que veladamente apoia. Sendo um país muito atrasado, não existe na Síria condições materiais para a existência de um regime mais democrático do que o do presidente deposto.
Existe, no entanto, condições para regimes imensuravelmente mais repressivos, o que o oprimido povo sírio já está descobrindo, enquanto testemunha o esfacelamento de seu país, posto de joelhos por invasores estrangeiros e vendo “Israel” ameaçando roubar uma fatia maior das terras de sua nação. Sob a bota do imperialismo, nada está ruim o bastante que não possa piorar, por isso, é um erro a esquerda apoiar a ditadura mundial, aceitando a propaganda dos monopólios que, visando seus próprios interesses, busca esconder os conflitos sociais sob a superficialidade de conflitos de formas de governo, “democracia contra fascismo” e afins.
“De qualquer forma”, conclui o autor britânico, “é improvável que o regime substituto vá abolir a Mukhābarāt (polícia secreta), proibir a tortura ou constituir um governo que seja responsabilizado por seus atos”. Não apenas é “improvável”, mas quase “impossível”. Isso porque para atender ao imperialismo que o usou para derrubar Assad e colocá-lo na chefia do governo, al Jolani deve atuar como um carrasco do povo sírio, impedir que a tendência popular em apoiar a Revolução Palestina se expresse e, mais do que isso, atuar como um cão de guarda do sionismo, como o próprio já indicou que será.
Para isso, todo aparato de terror será necessário, incluindo a polícia secreta, a tortura e tudo que o imperialismo denunciava no governo Assad – e que tanto sensibilizou alguns esquerdistas -, uma vez que, como inúmeras experiências demonstraram, as lembradas por Ali inclusive e outros como as ditaduras militares da América do Sul; um regime como o que se deseja para a Síria só é possível sob a base de uma cruenta ditadura voltada a massacrar o próprio povo.