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Coluna

O ‘Xandismo cultural’ manda às favas o garantismo penal

"Estamos em meio a um ataque violento ao Estado Democrático de Direito, mas não pelos populares, nem por Bolsonaro, mas pela atuação das instituições jurídicas e políticas"

Para que um juiz mereça este título, ele deve tomar decisões de acordo com o Direito, e Direito é ciência, técnica que permite, ou ao menos deveria permitir, o controle social sobre as decisões, sem o qual se reduz em puro autoritarismo. Este é o pressuposto de legitimidade e da própria existência do Estado Constitucional. O magistrado deve ser capaz de “absolver quando todos — imprensa, forças políticas e opinião pública — pedirem uma sentença condenatória e condenar quando todos pedirem a absolvição, diz Ferrajoli, cuja doutrina do garantismo penal é amplamente adotada nas faculdades brasileiras. Ensina-se, no curso de Direito, que quando um juiz toma partido em alguma causa, e, se tem objetivos políticos, ele perde completamente a legitimidade para julgar os fatos apresentados no processo. Para Ferrajoli esta é “a forma mais perversa de populismo”: o populismo judicial.

Quando tratei aqui nesta coluna de levantar, em apertadíssima síntese, algumas questões sobre a constitucionalidade (validade) dos tais crimes contra o Estado Democrático de Direito, introduzidos no Código Penal durante o governo Bolsonaro, foi para, em última análise, demonstrar que o Direito está completamente alijado das canetas dos magistrados brasileiros, salvo raras exceções. E se esta é a prática da mais alta corte de Justiça do país, é porque a democracia constitucional já foi às favas. Estamos lascados.

Sob o manto do combate ao crime, todo ódio aos pobres pôde ser satisfeito. Nas prisões, eles ficam bem longe dos olhos de toda gente limpinha e moralista. “Bandido bom é bandido morto”. Se não há pena de morte, então “que morram na cadeia!”. E este é um bom mote do populismo que já elegeu muita gente canalha nesse país. A mesma fórmula foi usada no combate à corrupção. 

Já assimilada pela sociedade e tolerada por grande parte dos juristas que sufocam as vozes dos criminalistas que atuam em defesa dos pobres – os advogados de “porta-de-cadeia” e, o garantismo penal não passa do livro caro que o estudante de Direito deve comprar para estudar para a prova na faculdade. A fórmula foi também infalível para perseguir e encarcerar o maior bandido de todos os tempos: aquele que conseguiu ascender politicamente entre os pobres e em defesa deles. O grande líder popular deveria ir para cadeia (e foi!), assim como os membros de seu partido e todos os seus asseclas. Sob o manto do combate à corrupção e tendo o garantismo penal ido pro inferno, ergueu-se uma máquina de moer reputações ao mesmo tempo que possibilitou gente como Sergio Moro e Deltan Dalangnol serem eleitos. 

Para o Direito Constitucional, fundamento de validade de toda Ordem Jurídica, não existe validamente combate à corrupção fora dos limites que o devido processo legal impõe. E isto está ocorrendo desde sempre, mesmo após a Constituição de 88, que teria inaugurado um Estado Democrático de Direito. O golpe branco contra a Presidente Dilma marca a grave regressão civil e cultural que vive o Brasil desde então, em que pese os esforços de alguns juristas que, mesmo sufocados, buscam lutar contra as arbitrariedades e desmandos do Poder Judiciário.

O Estado Democrático de Direito, que se constituiu sob a égide do devido processo legal, dispõe de um conjunto de garantias do cidadão contra as arbitrariedades do Estado, as quais são a principal fonte de legitimação do Estado Constitucional. O garantismo penal se extrai das garantias constitucionais e processuais, sob as quais o Estado deve atuar. A tal operação “lava jato” mandou às favas o devido processo legal com consentimento popular e da imprensa, e sob o silêncio de muitos juristas, o que resultou numa gravíssima distorção patológica da dialética política e tirou o Brasil do curso de uma democracia. A eleição de Bolsonaro e o aceite do ex-juiz Sergio Moro em compor seu governo coroaram o tal “populismo judicial” a que se refere Ferrajoli, a mais perversa forma de populismo e que conduz rápida e sorrateiramente ao fechamento do sistema democrático, abrindo as portas para um fascismo cínico.

A anulação das condenações ao Presidente Lula por suspeição ou incompetência depois de 580 dias preso confunde até mesmo aqueles que conhecem as letras jurídicas. Não é simples explicar, sob a ótica do Direito, o buraco negro onde nos enfiamos. É evidente que nenhum tecnicismo jurídico é capaz de convencer alguém sério que se trata de uma democracia que teria sido atacada por Bolsonaro e por meia dúzia de generais com apoio dos populares que depredaram os prédios do governo. Essa foi a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito? Seria cômico acreditar nisso, se não fosse trágico.

Estamos em meio a um ataque violento ao Estado Democrático de Direito, mas não pelos populares, nem por Bolsonaro, mas pela atuação das instituições jurídicas e políticas, com o apoio da esquerda pequeno-burguesa. O povo?! Ah, este é só um mero detalhe. E boa parte dele apoia Bolsonaro e a esquerda resta dominada pelo “xandismo cultural”.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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