“O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O pagador de promessas é a estória de um homem que não quis conceder – e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseada no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há, também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma linguagem comum entre os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade humana. São peças da engrenagem homicida.”.
A peça teatral “O Pagador de Promessas” foi apresentada pela primeira vez no dia 29 de julho de 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo. A história inspirou um filme homônimo de 1962, dirigido por Flávio Rangel, que venceu o prêmio Palma de Ouro do Festival de Cannes.
A história se passa na cidade de Salvador/BA, tendo como protagonista Zé-do-Burro, um simples camponês que fez uma promessa para que Santa Bárbara curasse o seu burro, que esteve à beira da morte após um galho de árvore atingir a sua cabeça.
Como forma de cumprir a sua promessa, o protagonista entrega parte de suas terras a outros camponeses pobres e faz uma romaria carregando uma cruz de madeira por 60 léguas até a mais próxima Igreja que tinha aquela Santa como ícone.
Ocorre que o pedido feito por Zé do Burro foi feito num terreiro de candomblé para Iansã, esposa de xangô, que na mitologia do candomblé é associada à Santa Bárbara, “divindade católica que foi morta pelo pai ao se converter ao cristianismo. Após a execução de Bárbara, um raio atingiu a cabeça de seu progenitor. Pela razão do óbito, muitos equiparam a santidade católica ao poder que Oyá tem de controlar os ventos e raios[1].”
O sincretismo religioso, típico da cultura popular brasileira, não significa inexistência de preconceito ou tolerância: o padre associa a promessa a um ritual diabólico, impedindo Zé do Burro de ingressar na Igreja com a cruz. A negativa do padre dá origem ao tema da peça, que consiste na insistência do pagador de promessa cumprir o honrado.
Ainda que Zé seja movido pela crença no sobrenatural, a sua luta pelo cumprimento da promessa não parece artificial ao leitor/plateia: tudo o que ele deseja é honrar sua obrigação e ficar em paz com sua consciência. Não se trata de um fanático religioso, mas de um homem comum do povo.
Aos olhos profanos dos demais personagens que cruzam com o pagador de promessas, o Zé do Burro lhes parece ora um fanático, ora um político radical. Mais frequentemente lhes surge como o idiota protagonista do livro de Dostoiéviski. A bondade e pureza das intenções do herói entra em choque com as demais personagens – a coletividade colabora com a tragédia do indivíduo.
Um repórter ao saber da história, busca explorar o caso para vender jornais. O galego, dono de um armazém, deseja que o pagador de promessas continue no seu intento, já que a repercussão de sua missão trouxe novos clientes ao vendedor. Bonitão, uma espécie de cafetão, se interessa pela mulher de Zé do Burro e, por isso, denuncia o protagonista para a polícia. Não obstante, Rosa, mulher do herói, deixa-se seduzir pelo cafetão, dada a seu inconformismo com a obstinação do pagador de promessas.
Como mencionado na nota introdutória do autor, esta peça não é exatamente uma denúncia da intolerância religiosa. Trata-se antes de uma crítica de toda uma engrenagem social constituída sob o falso conceito de liberdade.
O evidente tom político da peça teatral não cai no proselitismo e no panfletário: há, neste sentido, um paralelo interessante estre esta estória e os livros de Máximo Gorki.
O livro “A Mãe” do escritor russo narra o movimento revolucionário de 1905 e a consciência embrionária, de potencial revolucionária, do povo. Consciência ainda condicionada pelo obscurantismo de uma sociedade de tipo medieval. Quanto ao pagador de promessas, sua obstinação chega até o mesmo ponto embrionário de uma revolta ressentida, que ainda não se traduz numa consciência política revolucionária. Em outras palavras, o protagonista fica entre a a crítica e a resignação:
“ZÉ – Como…sei lá…mas tem de haver um jeito….tem de haver um jeito….(Desesperado). A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba…. (inicia um gesto, como se atirasse uma bomba contra a igreja, mas o braço se imobiliza no ar, ele percebe a heresia que ia proferir, deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu) Que Deus me perdoe! (…) Padre! Padre! Padre, eu andei sete léguas pra vir até aqui! Deus é testemunha! Ainda não comi hoje… e não vou comer até que abra a porta! Um dia, dois… um mês… vou morrer de fome na porta da sua igreja, padre!”.
O fim trágico de Zé do Burro consiste numa morte que não foi em vão. Tipos populares e capoeiras simpatizam com o protagonista e o apoiam contra a Igreja e a Polícia. Se identificam com a angústia do herói decorrente da injustiça e arbitrariedade. O povo carrega, ao final da peça, o caixão do herói, como se carregassem uma bandeira de luta.